Luta popular e políticas públicas foram essenciais para urbanização das favelas brasileiras
Por João Guilherme Tuasco, sob a supervisão da jornalista Carol Correia. Editada por Daniele Moura.
A primeira favela do Brasil, localizada no morro de Santo Antônio, Rio de Janeiro, foi removida e o local demolido para dar espaço às reformas urbanas da década de 1920. A remoção de favelas norteou a ocupação das cidades brasileiras até a década de 1970, quando este paradigma da habitação mudou. Nesse momento, entendeu-se a necessidade de melhorias nos assentamentos precários sem remover os habitantes do local em que viviam, como clamava a Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara no slogan “Urbanização sim, remoção não”.
A transformação dessas áreas é assunto do livro Urbanização de Favelas no Rio de Janeiro, lançado neste mês de agosto pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Observatório das Metrópoles, vinculado ao Ippur/UFRJ, que retoma aspectos tratados em Urbanização das Favelas no Brasil, de 2022, em que se analisa o assunto em oito metrópoles brasileiras. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o país tem 13.151 favelas que comportam mais de 5,1 milhões de residências, segundo dados de 2019. Número que pode ser ainda maior com o Censo 2022, ainda não divulgado.
Parte dessas comunidades foi urbanizada entre 1970 e os dias atuais. Temos como exemplo uma área da Rocinha, na zona sul do Rio, onde ruas foram alargadas; e a Maré, na qual a população da Nova Holanda foi realocada das palafitas, pelo Projeto Rio, para conjuntos habitacionais na Vila do João e Vila do Pinheiro. Nesse contexto, políticas públicas, investimentos internacionais e a atuação dos movimentos sociais foram importantes para este cenário. Entretanto esses movimentos, em meio à Ditadura Militar, foram “muito massacrados e perseguidos; algumas lideranças foram presas e desapareceram”, segundo Adauto Cardoso, professor do Ippur e um dos organizadores dos livros.
Leia Mais:
Um parque chamado Maré
Nos territórios, as casas crescem para cima do mesmo jeito que os filhos
O ‘progresso’ e o direito à moradia: um Rio de remoções
Moradia como direito constitucional
A Constituição Federal de 1988 garante o direito à moradia, regulamenta a função social dos imóveis e define a possibilidade de adquirir propriedades por meio de usucapião. Esse instrumento possibilita que quem mora por cinco anos numa área que não seja dele possa requerer regularização, a menos que outra pessoa reclame a posse do terreno. O texto é um marco que impede juridicamente a remoção das favelas, apesar de a regularização fundiária ser um “nó” nas políticas de urbanização, como pontua o professor.
Antes mesmo dessas diretrizes federais, cidades como Belo Horizonte, em Minas Gerais, Recife, em Pernambuco, Santo André, em São Paulo, e Rio de Janeiro, analisadas em Urbanização das Favelas no Brasil, desenvolveram políticas de habitação e órgãos específicos para a urbanização de favelas. O pioneirismo na criação e na consolidação de mecanismos institucionais propiciou que esses governos municipais pudessem ser a principal linha de frente sobre o tema.
“As políticas de habitação federais dependem muito da atuação dos municípios, que precisam ter capacidade de técnica de gestão, porque vão subcontratar as obras, contratar uma empreiteira ou empresa de engenharia ou de arquitetura para fazer o projeto. A gestão disso, o gerenciamento da obra, a própria definição da contratação, a análise do contrato e a definição do projeto, tudo isso depende muito de uma capacidade política, institucional e técnica da prefeitura, principalmente”.
Adauto Cardoso, professor do Ippur/UFRJ
Outros municípios, como Curitiba, no Paraná, Fortaleza, no Ceará, e Campina Grande, na Paraíba, criaram programas para a urbanização de favelas a partir da década de 1980, mas foram afetados por questões políticas que descontinuaram os processos. Das oito cidades analisadas no livro, Pelotas, no Rio Grande do Sul, foi a que não desenvolveu experiência municipal independente do governo federal.
Agenda internacional pela habitação
Desde a década de 1970, o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (Bid) e outras organizações internacionais investiram na urbanização das favelas. Com isso, criaram parcerias com os governos regionais e o Banco Nacional de Habitação (BNH), criado em 1979, para pôr essa agenda em pauta. Na década de 1980, o Banco Mundial deu recursos ao Projeto Recife, que objetivava reassentar populações que viviam à margem do rio Capibaribe, e, em 1990, ajudou na recuperação ambiental da Bacia do Guarapiranga e na urbanização de uma área de Salvador.
Décadas depois, o Ministério das Cidades, de 2003, e o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), de 2007, foram criados para melhorar a infraestrutura das cidades. Eles ajudaram os municípios com obras iniciadas por meio da cooperação internacional. No Rio de Janeiro, o PAC destinou 279 milhões de reais para a urbanização de favelas no Complexo do Alemão, em Manguinhos e na Tijuca, além de moradias em Marechal Hermes pelo programa Favela-Bairro. A iniciativa buscava a urbanização integrada, trazendo para perto serviços básicos como saúde, educação, lazer e moradia adequada. O professor Adauto Cardoso acredita que a aliança entre o Estado e organismos internacionais deixou uma marca na urbanização das favelas.
“A característica mais marcante é a história da incompletude por causa dos muitos projetos que ficaram incompletos. Isso porque, por mais que essa questão tenha entrado na agenda e tenha tido recursos durante certo período importante, e seja em algumas prefeituras assunto presente, nunca é tão prioridade ao ponto de ter todos os recursos que seriam necessários.”
Adauto Cardoso, professor do Ippur/UFRJ.
Desafios atuais
A capacidade de crescimento de favelas já urbanizadas faz com que o processo de urbanização seja contínuo das favelas brasileiras, sobretudo nas capitais. Além disso, a reconstrução do Ministério das Cidades, extinto em 2019 pelo governo de Jair Bolsonaro e recriado por Luiz Inácio Lula da Silva neste ano, o financiamento federal para a habitação e a capacitação de profissionais municipais são alguns dos problemas de hoje.
Maré
A história da Maré começa em 1920 quando moradores começaram a habitar em volta do Porto e da Praia de Inhaúma. Na década de 1940, as palafitas – barracos de madeiras erguidos acima da água – começaram a aparecer, além do aterro da Ilha do Fundão, com a instalação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ao longo dos anos, os moradores aterraram outros espaços e novas favelas se formaram – hoje são 16 favelas, o maior conjunto do Rio de Janeiro com 140 mil habitantes.
Em 1980, o Projeto Rio, foram criados conjuntos habitacionais na Vila do João e na Vila do Pinheiro para receber os moradores das palafitas que haviam sido removidas parcialmente, e integralmente com o passar do tempo.
Na década seguinte, as grandes chuvas com as precariedades que atingem a população favelada, fez com que fossem criados mais programas de intervenção – como por exemplo a Salsa e Merengue, uma das favelas da Maré que recebeu moradores desalojados de Manguinhos, favela vizinha.
Saiba Mais:
Cartilha Direito À Moradia Na Maré da Redes da Maré
Livro Urbanização de Favelas no Brasil
Redes da Maré: A luta pela moradia é coletiva