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Urgência das demandas de saneamento movimenta Maré, mas concessionária se ausenta de debate

Encontro reuniu moradores, ativistas e especialistas na Lona Cultural Municipal Herbert Vianna, na Nova Maré | Foto: Paulo Barros

Encontro reuniu moradores, ativistas e especialistas na Lona Cultural Municipal Herbert Vianna, na Nova Maré | Foto: Paulo Barros

Encontro de Saneamento da Maré reuniu, no último sábado, moradores, ativistas e especialistas na Lona Cultural Municipal Herbert Vianna

Por Hélio Euclides, em 30/08/2022 às 9h41

O V Encontro de Saneamento da Maré reuniu moradores, ativistas e especialistas na Lona Cultural Municipal Herbert Vianna, na Nova Maré, para discutir políticas públicas para o território, envolvendo água, esgoto, resíduos sólidos e manejo da chuva. O evento, que aconteceu no sábado (27/08), teve a organização do data_labe e o apoio da Redes da Maré. A discussão envolveu a questão hídrica e o esgotamento após a privatização. O objetivo foi explicar o que ocorreu após a privatização da Cedae e assim organizar estratégias de conquista dos direitos.

Um dos desdobramentos do encontro era abrir um diálogo sobre como a prestação do serviço da Águas do Rio vem sendo feita desde que a companhia privada passou a ser a responsável por parte do saneamento básico do Rio de Janeiro, incluindo a área da Maré. Apesar do insistente convite, a empresa não enviou nenhum representante para o encontro. Mesmo assim, os pesquisadores debateram quais mudanças são esperadas na favela com a privatização. 

O evento teve início com uma mesa sobre a participação social e atuação da Águas do Rio na Maré, que contou com a presença de: Inahra Cabral, graduando na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Estela Neves, professora de Política Ambiental na UFRJ; Patrícia Finamore, pesquisadora do Laboratório de Estudos de Águas Urbanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e João Roberto Lopes Pinto, professor da Pontifícia Universidade Católica (Puc-Rio)/Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e membro do Instituto Mais Democracia. A mediação coube a Shyrlei Rosendo, mestre em Educação e Políticas Públicas e coordenadora do Eixo Direitos Urbanos e Socioambientais, da Redes da Maré.

Shyrlei Rosendo abriu os trabalhos lembrando da sua experiência no território. “Tenho tristeza de pensar na Maré que, apesar dos seus 80 anos de existência, ainda tem a efetivação de direitos tão precária. Não temos direito ao meio ambiente. Como o Estado compreende esse território? Como os moradores se apropriam dessa mobilização? O que vemos são muitos na Avenida Brasil fazendo campanha para candidatos que não estão interessados pelas periferias”, diz. Rosendo questionou a administração pública. “Estamos num equipamento que está precário, será que se estivéssemos na Zona Sul, estaria assim? Estamos dentro de um conjunto habitacional que ganhou um prêmio pelo modelo, mas quem mora aqui sabe que a localização não permite que o caminhão do lixo circule e o saneamento básico é péssimo. Para a favela fazem de qualquer jeito, pois acham que aceitamos tudo”, expõe. 

A estudante Inahra Cabral já morou na Maré e na época achava normal os serviços oferecidos pelo poder público. Depois do convívio com outras pessoas em outros locais, percebeu que o tratamento governamental é diferenciado.

Compreendi que o que estava aprendendo na arquitetura tinha que ser convertido para defender o território. Começamos a discutir o assunto com alunos do Colégio Estadual João Borges de Moraes, envolvendo mais personagens como o coletivo Lutas Urbanas Tecnologia e Saneamento (LUTeS).

Inahra Cabral, ex-moradora da Maré e estudante de arquitetura

Cabral percebe um processo de engajamento dos alunos na questão da luta por saneamento. “Eles percebem que há a necessidade de políticas públicas para o território, para acabar com a problemática dos esgotos a céu aberto, o acúmulo de lixo, enchentes e o racismo ambiental. Temos um processo participativo para entender que para ter água não é preciso cobrança, pois é um direito universal”, afirma.

A professora Estela Neves lembra que o Brasil já era campeão de desigualdade antes mesmo da pandemia, depois ainda teve o aumento da riqueza da minoria. Na contramão a área ambiental leva a cultura de que água não é uma mercadoria e sim um bem. “É preciso o estudo hídrico, saber que saúde também significa cuidar da qualidade da água. O saneamento é uma área da política que reúne água, esgoto, lixo e águas pluviais, algo que é um serviço e não uma cobrança. Hoje temos a privatização do serviço, uma dimensão que virou negócio, algo para ganhar dinheiro. O saneamento não é pauta para os governantes, por isso precisamos ocupar espaços para pressionar pelos nossos direitos”, defende. 

A pesquisadora Patrícia Finamore já vê mudanças das prestadoras, que desejam trabalhar a medição. “Pelo decreto estadual 25.438/99 há a tarifa social, algo específico para locais como a Maré, que é um território considerado favela. Dessa forma, ninguém precisa estar inscrito no CadÚnico (Cadastro Único para Programas Sociais). Desde 2020, há cobrança de esgoto, mesmo sem o tratamento adequado. A tarifa social tem como valor R$ 40,52 que reúne o serviço de esgoto e água, disponibilização de 12 metros quadrados sem hidrômetro”, detalha. Para Finamore o grande problema é que há pessoas que ou pagam a conta ou comem. “Outro problema é que ao gastar uma quantidade de água maior, paga R$ 65,83, até 15 metros quadrados, superando isso passa a R$ 210,65. Isso acarreta em inadimplências. É preciso se pensar em isenção e tolerância com os picos de consumo”, diz.

O professor João Roberto Lopes Pinto foi o coordenador da pesquisa: Quem são os Proprietários do Saneamento no Brasil. Ele conta que a Águas do Rio, responsável pelo abastecimento de água e esgotamento sanitário na Maré, é concessionária da Aegea, líder no setor privado de saneamento básico no Brasil. “Fiz o monitoramento com uma pesquisa de quem são os proprietários do saneamento e mapeamento das corporações privadas no setor de 2017 a 2018. Cinco empresas controlam 80% do mercado privado de saneamento do Brasil, sendo financiadas por bancos, fundos de investimentos e empresas internacionais. Ele argumenta que o poder público precisa ser questionado e para isso é preciso conhecer os fatos. “A Aegea pagou a seus acionistas 51% de lucro líquido em 2020, num total de R$ 532 milhões. Já o lucro no primeiro trimestre de 2022 é de 237 milhões, um crescimento de 148%. A previsão para 2026 é um lucro líquido de 75%. A Aegea tem 108 processos jurídicos de natureza ambiental, com 511 no âmbito trabalhista e 37 de natureza criminal”, conclui. 

Uma carta em construção

Na parte da tarde ocorreu a apresentação do Relatório Cocôzap e os grupos de estudos de construção da Carta de Saneamento da Maré. Foi um momento de conversas e trabalhos para a construção da renovação da Carta, que hoje é o principal instrumento de incidência política. A carta começou a ser construída no primeiro encontro e agora no quinto é possível olhar para ela a partir de tudo que se acumulou durante esse tempo de trabalho.

Carta é, atualmente, o principal instrumento de incidência política no que diz respeito ao saneamento básico no território | Foto: Paulo Barros

A Carta de Saneamento da Maré traz um diagnóstico do território, com objetivo fortalecer a mobilização para o avanço na busca por políticas socioambientais que ainda não foram efetivamente garantidas. O documento é dividido em quatro eixos: esgotamento e Baía de Guanabara; abastecimento e manejo de água pluvial; resíduos sólidos; e saúde e bem-estar. A carta traz demandas somadas a indicativos para o desenvolvimento de políticas socioambientais, sendo parte integrante da Agenda Rio 2030. 

“Estamos vivendo um cenário novo na cidade do Rio de Janeiro de termos um serviço privado que cuida do nosso esgoto. Continuamos a sofrer consequências históricas e somos negligenciados ao direito à água de qualidade, de um esgoto tratado. O grande diferencial é a mudança para quem devemos cobrar e quais estratégias precisamos ter para lidar com os processos de garantia desse direito”, comenta. Clara Sacco, coordenadora e co- fundadora do DataLabe. Ela acredita que foi a primeira vez em que se discutiu na Maré o tema da privatização do saneamento do território.

Ana Paula Godoi, moradora do Parque União, gostou das mesas, pois os pesquisadores olharam para as questões essenciais, como a tarifa social e quem está mexendo com o dinheiro que a empresa ganha, e que o saneamento é um direito. “É sempre bom saber o que está por trás dos serviços, seja do governo ou das empresas. O que pode mudar com esse encontro é a forma de comunicação sobre o saneamento básico. Tentar deixar a informação mais acessível, para que outras pessoas possam entender, deixando de ser complexa uma questão. Há um interesse de deixar o tema complicado, para não compreendermos que a água é um direito básico. Nós podemos construir uma civilização melhor”, comenta.

A intervenção de Charles Gonçalves, presidente da Associação de Moradores da Baixa do Sapateiro, revelou que a favela já contribui com a tarifa social há 12 anos e na questão da água cerca de 80% são assistidos e que o esgoto é precário. “Começou cobrando R$ 16,00 e hoje o valor é de R$ 46, 00. Acredito que já pagamos cerca de R$ 4 milhões, só a Baixa do Sapateiro. Tem morador recebendo conta no valor de R$ 687,00. Eles só querem mais lucros e enquanto isso a Maré fica à margem do saneamento”, detalha. Hoje há quatro favelas na Maré que pagam água: a Baixa do Sapateiro, o Morro do Timbau, a Roquete Pinto e a Praia de Ramos. “Somos contra a colocação dos hidrômetros, pois já com a tarifa social nem todos os moradores conseguem pagar e viram inadimplentes, tendo o nome no spc (serviço de proteção ao crédito). Uma pena que não tivemos representantes da Águas do Rio para responder os nossos questionamentos”, finaliza.

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