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Violência naturalizada

Abusos às grávidas acontecem tanto na rede pública de saúde quanto na privada; muitas mulheres não sabem que sofreram esse tipo de violência | Foto: Douglas Lopes

Negligência, maus-tratos e humilhação na hora do parto é violência obstétrica – mais uma das muitas violações sofridas pelas mulheres.

Maré de Notícias #98 – março de 2019

Por: Camille Ramos

“Meu parto foi anormal”, essa é a resposta que a comerciante Náthali Campos de Souza dá, quando perguntada sobre a forma pela qual seu primeiro filho, Kauã, nasceu. Forçada a um trabalho de parto “anormal”, por permanecer sem passagem, mesmo horas depois de sua bolsa ter estourado, Náthali fala do episódio – traumático – como se tivesse acontecido no dia anterior e, não, há 15 anos. Infelizmente, casos como os de Náthali são mais comuns do que se imagina e caracterizados como violência obstétrica – mais um abuso e violação, entre os muitos já sofridos pelas mulheres.

 Divulgada pela Fundação Perseu Abramo, em 2010, a pesquisa “Mulheres brasileiras e Gênero nos espaços público e privado” mostrou que uma em cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência durante o parto. Mais comum de se ver do que deveria, a violência obstétrica pode ser considerada como qualquer intervenção física ou psicológica cometida por hospitais, médicos e/ou suas equipes, que interferem no processo natural do trabalho de parto, enfraquecendo ou anulando a autonomia da mulher em decidir sobre seu corpo e sua sexualidade.         

Vítimas são negras, adolescentes, solteiras e/ou pobres

O maior número de casos acontece entre mulheres solteiras, adolescentes, de baixo poder aquisitivo e, principalmente, negras, segundo um documento da Organização Mundial da Saúde (OMS). Esse era o caso de Aline Montanheiro, quando, no parto de seu filho Miguel, recebeu 11 pontos, após um corte justificado como uma “ajuda” para o bebê nascer. “Não tinha passagem pro meu filho sair. O médico disse pra eu fazer força que ele ia me ajudar, empurrou a minha barriga e fez o corte. Miguel nasceu com a cabeça amassadinha, mas, graças a Deus, depois ficou normal”, relembra Aline.

Chamado Episiotomia, o corte feito na região do períneo (conjunto de músculos que ficam entre a vagina e o ânus) para “facilitar” a saída do bebê, já foi um procedimento de rotina, mas atualmente é contraindicado pela OMS.

Do público ao privado e em todas as fases de uma gestação

Os abusos a grávidas não acontecem, apenas, em hospitais públicos. A mesma pesquisa da Fundação Perseu Abramo indica que 17% das mulheres atendidas no setor privado afirmam ter sofrido violência. Na rede pública, a taxa é de 27%. Isso porque, segundo a psicóloga Miria Benincasa, que dá aulas e tem trabalhos na área da Psicologia Obstétrica, as pesquisas mostram, apenas, as mulheres que sabem que foram abusadas, mas não inclui aquelas que não têm dimensão da violência sofrida. Além disso, muitas mulheres têm dificuldade de denunciar os abusos, legalmente. Segundo a psicóloga Miria, a fragilidade da mulher é agravada por uma condição histórica. “Toda violência contra a mulher tem características machistas e está dentro do grupo de violência de gênero. O papel da mulher na sociedade é historicamente inferior, então, a violência obstétrica é reflexo do machismo estrutural. Denunciar abusos num hospital não é, apenas, denunciar um universo masculino, é também denunciar médico, e essas são duas categorias muito poderosas neste País”, observa a psicóloga.

Falta de legislação

No Brasil, não há uma legislação específica para tratar casos de violência obstétrica, o que torna ainda mais árdua a ação de denunciar os abusos sofridos. De acordo com a advogada Roberta Eugênio, que atua na Casa das Mulheres da Maré, há dificuldades em se enquadrar esse tipo de violência em uma legislação específica. “A legislação é vaga. Temos normas que nos protegem quanto ao erro médico, ao hospital e ao Estado, mas ainda é uma dificuldade entender e enquadrar a violação que pode ser física e também psicológica”, explica.

 Sendo assim, o melhor em todos os aspectos é se prevenir. Tanto Roberta quanto Miria afirmam que a forma mais eficiente para diminuir o risco de sofrer abusos é buscar uma rede de conhecimento e apoio ao parto, com grupos de mulheres, doulas e afins. Num País onde 90% das mortes no parto poderiam ter sido evitadas, é um atraso assustador, sem dúvida, não ter uma legislação para prevenir e punir casos de violência obstétrica.

Mais que a dor do parto…

“Lembro que uma enfermeira “trepou” em cima de mim com os dois cotovelos, empurrando minha barriga pra baixo e, mesmo assim, o bebê não desceu. Depois disso, veio o corte, sem autorização. Eu perdi muito sangue. Depois puxaram meu filho por um ferro e ele nasceu roxo, com a cabeça deformada e muito inchada. Até hoje ele tem uma cicatriz”. Náthali Campos de Souza, comerciante.


“Foi a pior experiência que já tive. Dei entrada no hospital com muita dor e sangrando bastante [ela teve um aborto espontâneo]. Enquanto esperava o médico que me acompanhava, fui atendida por outro. Este estava com um celular na mão, assistindo a vídeos e permaneceu assistindo durante minhas perguntas. Quando o questionei sobre o que poderia ser feito no momento, ele me respondeu que ‘estava esperando o material descer’, e completou: ‘mas se você quiser sentir dor, ok’, demonstrando imensa falta de empatia”. Isabel Rocha, jornalista.


“Escolhi uma casa de parto e tive meu acompanhamento por lá, todo humanizado. Quando fui ter minha filha, eles utilizaram linguagens técnicas para eu não saber o real estado dela. Pedi pra ser transferida do hospital e, lá, sofri um toque doloroso, ouvi piadas racistas e me conduziram para a cesariana. Depois, não me deixaram pegar minha filha no pós-operatório, porque disseram que eu estava anestesiada, mesmo eu avisando que já sentia minhas pernas. E, por fim, quando fui conduzida ao quarto, tive de pedir para levarem minha filha junto e ainda ouvi reclamações, como se não fosse um direito meu tê-la junto a mim, o tempo todo”. Mariane Duarte, cientista social.

Você sabia?

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