Mobilização salva CIEP

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Moradores enfrentam fogo e tiros para salvar escola

Hélio Euclides

Incêndio em favela sempre traz destruição. Esse era o meu maior medo quando vi o CIEP Presidente Samora Machel, na Nova Holanda, em chamas. Quando eu e Elisângela Leite, repórter fotográfica, chegamos, percebemos dezenas de pais tentando apagar o fogo com extintores. Ouvi de um deles: “se a educação daqui não se encontrava tão bem, imagine agora”. Bom, penso que de momentos difíceis sempre há algo que nos fortalece. E fazer parte dos moradores que enfrentaram labaredas para salvar uma escola não teve preço. Os bombeiros, quando chegaram, foram aplaudidos como forma de agradecimento. Os moradores, que podem se considerarem heróis, não abandonaram o local, e ainda ajudaram os bombeiros.

O lado mais triste desse episódio foi quando percebi pessoas correndo no pátio, para se abrigar de tiros, vindo de blindados. O mesmo Estado que deveria se empenhar em atender pessoas que pediam socorro, num ato de insensibilidade, envia mais uma vez a repressão. Não existe explicação plausível para os blindados entrarem daquele jeito, num momento tão difícil. Com a ajuda e a garra de todos, o incêndio chegou ao fim. Não tinha muito o que comemorar, apesar de não ter nenhum ferido pelo fogo, tinha uma vítima das balas, uma professora do Espaço de Desenvolvimento Infantil (EDI) Azoilda Trintade atingida de raspão.

No meio de funcionários da escola, pais e moradores, Nilo Albuquerque, administrador regional da 30ª RA, tentava achar uma solução para o caos daquele momento. “Na manhã do dia do incêndio, eu já tinha visitado a escola, para buscar solucionar a questão dos mosquitos. Quando soube do que ocorria, voltei à escola com o extintor do carro. Conseguimos retirar as crianças e dei orientação às pessoas para evitar vítimas. Comecei a ligar para as autoridades, foi quando chegou os bombeiros, meu coração acalmou”, disse Nilo.

A calma durou pouco tempo. Como todos que estavam em frente ao CIEP, Nilo não esperava que a situação fosse agravar. “Comecei a escutar uma gritaria, o motivo era uma operação da Polícia Civil, do Core (Coordenadoria de Recursos Especiais). Me senti na obrigação de intervir nesse ato violento. Para piorar, tinha muitas crianças na rua. Então, me posicionei na direção do caveirão, e comecei a explicar a situação. Foi nesse momento que veio o disparo, que pegou no carro, ao meu lado. Comecei a chorar e pedi a Deus que ninguém fosse atingido. Essa ocorrência atrapalhou no controle do fogo, pois os bombeiros ficaram encurralados. O rescaldo foi feito com a ajuda de moradores. Não sou contra incursão policial, mas aquela não foi feita numa hora certa. Não quero ensinar ninguém a trabalhar, mas o que vimos foi pouca preparação. A Maré tem uma fama muito feia lá fora, precisam saber que somos cidadãos dignos, que pagamos nossos impostos. O que ficou desse episódio foi que os moradores abraçaram a escola”, afirma.

A circunstância foi tão grotesca, que nem Aline Oliveira, diretora do CIEP Presidente Samora Machel, escapou de ficar encurralada, e precisou se proteger das balas. “Eu estava vindo de van, que me deixou na porta da escola, no meio dos tiros”, resume. Quando se percebeu a presença de polícias na favela, alguns moradores falaram que podia ser para escoltar os bombeiros. Engano, apesar de ser cotidiano alguns serviços serem escoltados por moradores para entrar nas comunidades. O SAMU, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, por exemplo, sempre entra na Maré na companhia de um morador.  Nesse episódio ocorreu o mesmo. “Houve uma preocupação por parte da escola de enviar um professor para acompanhar o caminhão dos bombeiros da Avenida Brasil até dentro da Nova Holanda.  Mas não aconteceu, pois além do fogo, todos tiveram de ficar presos nas escolas, para se proteger dos caveirões. Foi lamentável, muito triste essa ação da polícia”, desabafa Fernanda Alvarenga, professora do EDI Pescador Isidoro Duarte – “Doro”. O bombeiro Sílvio Rodrigues de Oliveira inclusive confidenciou à diretora Aline que não foram os bombeiros que pediram o apoio da polícia.

 

A união faz a força

Naquela tarde de 19 de junho, foram muitos moradores anônimos que não deixaram o fogo se alastrar pelas salas. Cesar Serralheiro foi um dos primeiros a chegar no local. “Quando cheguei ainda tinha crianças no prédio, e a primeira coisa que fizemos foi a retirada delas. A fumaça era densa, então os alunos foram levados para o CIEP Elis Regina. Acredito que deveria ter socorristas nos prédios públicos. Depois do espaço evacuado, abrimos um buraco na sala para facilitar o acesso dos bombeiros; o problema foi a ausência de água nas caixas-abrigos de mangueiras”, reclama. Para Cesar, todos que participaram da ação saíram ganhando. “O que senti na hora, e os outros companheiros também, foi a obrigação de se mobilizar em prol da nossa escola. Isso me emociona”, destaca.

A união veio de todos os lados. A vontade de salvar o colégio era maior que o medo. “Tínhamos extintores, que não foram suficientes, então outras escolas emprestaram. Outro ponto, foi a quantidade de responsáveis que vieram ajudar, mas ficamos preocupadas, já que todos inalavam muita fumaça, lembra Tatiane Peixoto, diretora adjunta do CIEP Presidente Samora Machel.

“Realmente foi a comunidade que salvou a escola, pois o tempo de deslocamento foi grande, e sem a população o estrago seria maior”, disse o bombeiro Sílvio à diretora do CIEP. “O incêndio nos deixou abalados. Tristeza à parte, esse fato nos enriqueceu de alguma maneira. A palavra final é gratidão. Com ajuda, todos saíram em segurança. A comunidade não deixou o fogo chegar nas salas da diretoria e secretaria, protegeu os documentos”, informou a diretora Aline.

Profissionais de ensino disseram que a suspeita da causa do incêndio foi um curto-circuito num ar condicionado na sala de informática. Já os bombeiros informaram que as causas são apuradas pela Polícia Civil. Sobre a falta d’água no sistema de incêndio do colégio, o Corpo de Bombeiros explicou que a instalação e a manutenção dos equipamentos do sistema preventivo são de responsabilidade do administrador legal da edificação.

Depois do incêndio

Após o trabalho de rescaldo, havia uma escola com salas inundadas, fios em curto, escuridão e um cheiro muito forte de fumaça. Um local impossível para funcionamento. Um plano para que os alunos não ficassem sem aula foi logo organizado, e todos foram recebidos na Escola Municipal Osmar Paiva Camelo. De novo, a solidariedade falou mais alto. “Para a mudança de escola, precisávamos carregar o material, tínhamos apenas dois funcionários disponíveis, mas a população nos ajudou. Dessa forma, em uma semana já estávamos com aulas normais. A Escola Osmar Paiva nos recebeu de braços abertos, com união, dessa forma, o trabalho funciona muito bem”, revela a diretora Aline.

Os pais, hoje, têm o desejo de que as aulas voltem ao local antigo. “Todo dia tem responsável pedindo a volta para o CIEP, estão ansiosos. Entendemos o porquê do desejo de voltar para o CIEP, pois lá é um local de resistência, de momentos difíceis, mas que superamos. O problema que passamos hoje é que o CIEP ficou ocioso, e já sofre com violações. Todos os dias vamos à escola, o que encontramos são cadeados quebrados. Materiais desapareceram e fiação foi furtada, o que pode causar demora no retorno. A obra de reforma está sendo feita, e deverá ser concluída em dois meses”, desabafa a diretora.

Uma boa notícia é que apesar das dificuldades, nenhum profissional pediu transferência da unidade escolar.

Bombeiro preso

Ao final do incêndio, o perigo recomeçou, com um tiroteio próximo ao CIEP. Na era da internet tudo é registrado no celular, e logo postado. Foi o que fez o subtenente do Corpo de Bombeiros Sílvio Rodrigues de Oliveira. Ele filmou o momento em que interrompeu o serviço para se abrigar dos tiros, depois divulgou a gravação. Sílvio foi detido por nove dias no quartel do Méier, por divulgar imagem indevida.

A Associação de Bombeiros Militares do Estado do Rio de Janeiro (ABMERJ) manifesta desacordo com o ocorrido. “Nós expressamos, na época, nossa opinião que foi de total repúdio à atitude de privar um pai de família, que estava no cumprimento de seu dever, em função de expor as mazelas em que os profissionais de Segurança Pública e a própria população têm sido expostos no dia a dia. A pergunta é: os bandidos que atiraram, algum foi preso? O Comando cometeu uma grande injustiça pelo excesso de rigor da punição”, declara a Associação.

A assessoria de imprensa da Secretaria de Estado de Defesa Civil e Corpo de Bombeiros alegou que a sanção ao militar foi determinada pelo descumprimento de norma interna da instituição, no que diz respeito à produção e à divulgação de imagens de ocorrências. O vídeo produzido não configura material oficial da corporação.

Sobre a segurança dos bombeiros, a assessoria enfatizou que os militares seguem um protocolo interno da corporação; que o objetivo da corporação é garantir que o atendimento seja prestado, sem descuidar do zelo pela integridade física dos bombeiros.

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