Favela não vota só por assistencialismo

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Colocar as favelas na centralidade do debate eleitoral, como protagonistas, é crucial para construirmos a democracia

Por Eliana Sousa Silva para O Globo

Não é de hoje que as favelas do Rio de Janeiro ocupam um lugar ambíguo nas discussões políticas e midiáticas em ano de eleição. Ora como percurso de campanhas, ora como assunto delicado nos projetos de governo de candidatos, elas são tratadas como de importância secundária ou utilitária, mas alheias aos debates centrais da política partidária. Isso quando não são abertamente apontadas como problemas em si.

Mas nas urnas o voto de moradores de favelas conta como o de qualquer outro cidadão. Isso pode até incomodar alguns setores da sociedade, como demonstram a enxurrada de polêmicas vazias e fake news produzidas com a recente presença de Lula no conjunto de favelas do Alemão e a difamação generalizante aos moradores, apontados como “bandidos”. Essa visita histórica foi resultado da mobilização de lideranças, comunicadores e ativistas das favelas do Rio.

Já passou da hora de considerarmos os posicionamentos políticos advindos das favelas com seriedade e responsabilidade. Não falo isso como uma questão de inclusão social. A favela é política e tem o poder de afetar diretamente os resultados eleitorais, seja em nível municipal, estadual ou federal.

A favela é política para além do calendário eleitoral. A Nova Holanda, umas das 16 favelas da Maré, onde cresci e desenvolvi toda a minha trajetória, tem uma história marcada pela efervescência política e cultural, de onde emergem lideranças comprometidas com a população. São as trajetórias de luta de moradores de favelas que permitem a construção de mobilizações por direitos, contra a negligência estatal e em defesa da democracia.

É nesse contexto que pesquisadores da ONG Redes da Maré analisaram a apuração dos votos do primeiro turno nas 132 seções eleitorais da região. O objetivo é entender como votam os moradores da Maré e produzir alternativas à narrativa da política partidária a partir dali. Foram 61.745 eleitores aptos a votar, o suficiente para eleger mais de quatro deputados estaduais. Comparando os resultados, podemos desconstruir alguns mitos. Por exemplo, sobre o voto da favela ser guiado por campanhas clientelistas que se utilizam de benefícios sociais.

Se tomarmos a disputa de narrativas entre Bolsa Família e Auxílio Brasil, benefícios tão determinantes para a vida periférica, percebemos que os períodos de prevalência de um ou outro não se refletiram nas urnas de forma significativa. Em 2018, o Bolsa Família foi duramente criticado pelo candidato que venceu e obteve maioria também nas favelas da Maré (34% dos votos válidos para Bolsonaro, ante 31% para Haddad). Nas eleições de 2022, em que essa mesma candidatura aposta no Auxílio Brasil como estratégia, os votos demonstram que os moradores da Maré apoiaram seu adversário em maior quantidade (55% para Lula ante 38% para Bolsonaro, votos válidos).

Outra questão evidente é a dimensão das abstenções e anulações na Maré, em patamares semelhantes aos índices do Rio de Janeiro e do Brasil. Foram 24% de eleitores que não compareceram ou não puderam enfrentar as longas filas que se formaram de forma atípica, como ocorreu em várias seções eleitorais em todo o Brasil. Além dos faltantes, outros 6% votaram em branco ou nulo, revelando uma falta de identificação de parte do eleitorado da Maré com as candidaturas.

Análises como esta nos permitem identificar novas narrativas e posicionamentos. Considerando que mais de 17 milhões de pessoas vivem em favelas no Brasil, se faz urgente uma mudança de paradigma e reorientação das campanhas e propostas de governo. Colocar as favelas na centralidade do debate eleitoral, como protagonistas, é crucial para construirmos a democracia com mais diversidade no Brasil.

*Eliana Sousa Silva é diretora fundadora da ONG Redes da Maré

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