Mesmo após ‘80 tiros’: crimes cometidos por militares se tornam ‘casos sem solução’

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Após dois anos e 5 meses do assassinato do músico Evaldo dos Santos Rosa e do catador Luciano Macedo, ainda não houve responsabilização dos culpados

Por Hélio Euclides, em 18/09/2021 às 9h

Editado por Tamyres Matos

Pela terceira vez foi adiado na última quarta-feira (15) o julgamento dos 12 militares que, em operação em sete de abril de 2019, alvejaram o carro de uma família em Guadalupe. O músico Evaldo dos Santos Rosa estava no carro com a esposa, Luciana Nogueira, o filho de sete anos, o sogro e uma amiga. Todos estavam indo para um chá de bebê. Evaldo morreu no local e, dias depois, faleceu o catador de materiais recicláveis Luciano Macedo, que tentou ajudar a família. Na operação, o sogro de Evaldo sobreviveu após ser ferido de raspão nas costas e no glúteo direito. 

Segundo o laudo feito na época, aconteceram cerca de 257 disparos, destes com 62 tiros atingiram o carro – à época, o crime ficou conhecido como “caso dos 80 tiros” -. O Ministério Público Militar pediu a condenação de oito militares e a absolvição dos outros quatro envolvidos na operação, com alegação de falta de provas. O julgamento se refere a dois homicídios qualificados e tentativa de homicídio contra os outros quatro componentes no carro. 

A primeira vez que o julgamento foi adiado, em sete de abril deste ano, as restrições de atividades em função da pandemia foram a justificativa do Tribunal Militar. Na segunda tentativa, o advogado dos militares, Paulo Henrique Pinto de Mello, alegou agravamento de sua condição de saúde, após ter sido infectado pela covid-19. Agora, na última quarta, o advogado pediu adiamento justificando problemas fonoaudiólogos. A juíza federal substituta, Mariana Aquino, da 1ª Auditoria da 1ª Circunscrição Judiciária Militar, após os adiamentos, resolveu remarcar o julgamento para o dia 13 de outubro, às 9h.

Luciana Nogueira ao lado de Evaldo dos Santos Rosa | Foto: Arquivo pessoal

Irone Santiago é mãe de Vitor Santiago Borges, que teve o carro alvejado por militares que ocupavam a Maré em 2015. Vitor foi atingido por dois tiros: um pegou na coluna, deixando-o paraplégico, e o outro atingiu a perna direita e saiu na esquerda, resultando em sua amputação. Depois disso, Irone se uniu com outras mulheres que sofrem após situações de violências às quais os filhos foram submetidos e fundou o grupo Mães da Maré. Ela demonstra indignação com a morosidade do Judiciário. “Acho uma falta de respeito, não só com a família do Everaldo, mas com outras tantas. Como no caso de Vitor, que está vivo, as suas necessidades são para ontem. Estou pensando junto com a viúva Luciana de reunir as Mães da Maré e outros coletivos para fazer um ato na porta do Ministério Público Federal”, diz.

Julgamentos questionados

Uma operação conjunta da Polícia Civil e do Exército, em novembro de 2017, deixou o saldo de oito mortos e uma pessoa gravemente ferida. Dois inquéritos foram então abertos, um pelo Ministério Público do Estado do Rio e outro pelo Militar, para apurar o ocorrido. E os dois acabaram arquivados. Isso se deve à atuação do então presidente Michel Temer, que, em outubro de 2017 sancionou um projeto que transferia para a Justiça Militar a investigação e o julgamento de homicídios cometidos por militares durante operações de segurança pública em território nacional. O resultado é apontado pelos familiares de vítimas como “cooperativismo militar”, onde não há condenação de colegas de profissão.

Um outro exemplo deste tipo de situação ocorreu no caso de Vitor Santiago Borges. O cabo do Exército Diego Neitzke, que atirou contra Vitor, deixando-o paraplégico e com uma perna amputada, foi absolvido por unanimidade. No julgamento realizado pela Justiça Militar em março de 2020, o promotor militar Otávio Bravo alegou que o soldado agiu em “legítima defesa imaginária” e que ele deveria ser absolvido da acusação de lesão corporal gravíssima.

Um fracasso de operações

Em novembro de 2010, as Forças Armadas fizeram uma megaoperação no Complexo do Alemão para ocupação de território. De lá para cá, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica realizaram, em diversas situações, o papel de policial. As operações para a Garantia da Lei e da Ordem (GLO) são inúmeras: em 2011 foram quatro; em 2012, três; em 2013 ocorreu uma; em 2014 foram seis; em 2015, três e em 2016 aconteceu duas. O número cresceu em 2017, com 18 operações. Após o decreto de GLO, assinado pelo então presidente da República Michel Temer, foram 15 etapas da Operação Furacão em diversos pontos do Rio de Janeiro. 

Em 2018, a intervenção federal carimbou a permissão para este tipo de operação. Durante os 10 meses que durou, foram monitoradas 711 operações e 221 ações de patrulhamento, impactando 296 locais – na maioria, favelas. Mais de seis mil pessoas morreram de forma violenta no estado naquele ano, com redução de apenas 1,7% em relação aos registros de 2017. O interior do estado teve uma escalada de mortes, terminando a intervenção com 1.648 óbitos, valor 15,8% maior do que o registrado no ano anterior. Das mortes violentas ocorridas no Rio durante a intervenção, 22,7% tiveram como responsáveis policiais e militares.

Segundo dados do Observatório da Intervenção, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CeSec), a atuação dos militares deixou como legado na área um crescimento de 57% nos tiroteios. Além disso, apenas 6% da verba destinada – cerca de R$ 72 milhões de reais – foi usada, sendo a maior parte, R$ 61 milhões, destinada às Forças Armadas.

Na ocupação da Maré, os militares permaneceram de abril de 2014 a junho de 2015, com o saldo negativo de 12 mortes. A proposta era a implantação de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), o que não saiu do papel. A operação terminou com uma redução temporária no índice de homicídios e dezenas de trocas de tiros. O gasto total chegou a R$ 400 milhões. Em entrevista à Agência Pública, o general Villas Bôas afirmou que o papel do militar não é ser policial e que se arrependeu da ocupação da Maré. Um relatório produzido pela Redes da Maré em parceria com a Universidade Queen Mary, do Reino Unido, mostrou que os moradores da Maré não avaliaram positivamente a ocupação. Para 69,2%, a presença dos militares não aumentou a sensação de segurança.

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