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Maré é bairro: 30 anos de lutas e mobilizações

Lei municipal foi criada em 1994 e instituiu o conjunto de favelas em bairro. O que mudou de la pra cá? | Foto: Douglas Lopes

Lei Municipal que instituiu o conjunto de favelas da Maré em bairro completa 30 anos neste 19 de janeiro

Por Henrique Silva, coordenador do Núcleo de Memórias e Identidades da Maré (NUMIM), projeto da Redes da Maré

Maré é bairro: há 30 anos, um capítulo importante na história da Maré foi escrito. Com o decreto da LEI Nº 2119, de 19 de janeiro de 1994, o Conjunto de Favelas da Maré tornou-se formalmente um bairro da cidade do Rio de Janeiro: o bairro Maré. A partir disto podemos pensar coletivamente sobre: O que essa mudança de status significou para os moradores da Maré?

Com mais de 80 anos de histórias, o Conjunto de Favelas da Maré tem passado, desde os primeiros núcleos de habitação entre a Praia de Inhaúma e o Morro do Timbau até a atual formação territorial, por um processo contínuo de resistência e luta por direitos dos seus moradores, buscando a permanência  e a melhoria da qualidade de vida.

A fim de refletir sobre essa e outras questões, ao longo de 2024 o Jornal Maré de Notícias irá produzir uma série de reportagens disponíveis aqui no formato digital, mas também no nosso impresso, sobre os 30 anos de formalização deste território como bairro. Para isso, recorreremos ao passado a fim de compreender o impacto dessa lei no conjunto de favelas nessas últimas três décadas.

Ao longo das matérias, serão abordados temas como raça, gênero, educação, cultura, saúde, urbanização, segurança pública, entre outros, com o intuito de enfatizar a luta política em disputa por um lugar na cidade. Acompanhe!

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As mulheres são as principais protagonistas das mobilizações desse território. | Foto: arquivo Redes da Maré

O contexto político anterior à Lei

No fim dos anos 70 o Brasil iniciava um processo de reabertura política que culminou no fim da ditadura militar (1964-1985). Esse longo período foi marcado pela ausência da participação popular nas decisões políticas, tais como em processos eleitorais, tendo sido realizada somente em 1989 a primeira eleição direta para presidente. No entanto, é importante lembrar que é neste momento de redemocratização que surgem algumas iniciativas de políticas públicas com foco em favelas1, contribuindo assim,  para a inserção desses espaços em programas governamentais futuros.

Na Prefeitura do Rio, por exemplo, foi criada em 1979 a Secretaria de Desenvolvimento Social, que era chamada muitas vezes de  “prefeitura dos favelados” pelo fato de ser a secretaria com maior entrada nas favelas por conta das políticas públicas implementadas nas áreas de saneamento, educação e saúde em território de favelas comportando projetos como o de Mutirão2, que realizava desde obras de saneamento a construção de creches comunitárias nas favelas e na área da Saúde a construção de consultórios odontológicos.

No governo do Estado, na primeira gestão de Leonel Brizola (1983-1987), também houveram alguns programas com foco na favela, como os projetos de saneamento promovidos pelo PROFACE3 da CEDAE e “Cada Família um Lote”, voltado principalmente para processos de regularização fundiária. 

A promulgação da Nova Constituição em 1988 no Congresso Nacional, corroborou com a aprovação constitucional da lei que reduzia de 20 para 5 anos o tempo necessário para se obter o direito de posse dos terrenos com até 250 metros quadrados utilizados para moradia, o que em alguma medida respaldou a maioria da população que vivia nas favelas no Rio de Janeiro naquele momento, tendo em vista que esta lei assegurava a posse do terreno especificamente para cidadãos que não tinha onde morar.

Neste período, houve ainda a inclusão da LEI COMPLEMENTAR Nº 16, DE 04 DE JUNHO DE 1992, que trazia no “Art. 44 – III – não remoção das favelas; IV – inserção das favelas e loteamentos irregulares no planejamento da Cidade com vista à sua transformação em bairros ou integração com os bairros em que se situam”,  no plano diretor da cidade do Rio de Janeiro de 1992.

Por fim, em 1993, com o início da gestão de César Maia na prefeitura do Rio, foi  criado o GEAP – Grupo Executivo de Assentamentos Populares do Regularização de Loteamentos, propondo seis programas, a saber:  Regularização Fundiária e Titulação; Novas Alternativas; Morar Carioca; Morar Sem Risco e Favela-Bairro. Importante destacar que a experiência adquirida das equipes de trabalho, que atuaram dentro das favelas nos primeiros programas supracitados durante o período de reabertura política, foi crucial para criação desses novos programas com o foco em favela, resultando posteriormente na criação da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Secretaria Municipal de Habitação no ano de 1994.

Contexto no conjunto de favelas da Maré anterior à lei

Em 1979, o Governo Federal, por meio do Projeto RIO, anunciou que “acabaria” com as 6 favelas na Maré: Parque União, Rubens Vaz, Nova Holanda, Parque Maré, Baixa do Sapateiro e Morro do Timbau, gerando medo e incerteza entre os moradores sobre uma possível remoção. Essa situação levou à rápida organização das associações de moradores das 6 favelas e à criação da CODEFAM para defender os direitos da comunidade.

Nos primeiros encontros da CODEFAM com o governo, representado por Mário Andreazza, o ministro do interior que liderava o Projeto Rio, ficou esclarecido que apenas as famílias em situação mais precária, vivendo nas palafitas à beira da Baía de Guanabara, seriam transferidas para os novos conjuntos habitacionais do projeto: Vila do João (1982), Conjunto Esperança (1982), Vila do Pinheiro (1983) e Conjunto Pinheiro (1986). Para as áreas semi-urbanizadas, a promessa era de urbanização e saneamento total.

A derrota do ministro Mário Andreazza nas prévias de seu partido para ser candidato à presidência em 1985 impactou na continuidade das obras de urbanização e saneamento, resultando em paralisações e falta de verba. No entanto, a luta pela urbanização foi somada à atuação da Associação de Moradores da Favela Nova Holanda, que teve a primeira eleição direta na favela com a vitória da Chapa Rosa, contribuindo para pressionar os governos a continuarem as obras. Durante os oito meses de paralisação das obras às associações do conjunto de favelas da Maré liderados pela Associação de Nova Holanda, elaboraram um relatório anexando fotos e um abaixo-assinado contendo mais de 11 mil assinaturas exigindo a liberação de verbas para a continuidade das obras, que foram concluídas apenas no final de 1991.

Atualmente o conjunto de Favelas da Maré conta com 16 favelas, mas no ano de 1994, no momento da criação do Bairro Maré haviam 13 favelas no território, porque os conjuntos de Nova Maré (1996) e Salsa e Merengue (1997) são posteriores a lei de 1994 da criação do Bairro.

A Favela de Marcílio Dias se soma politicamente ao Conjunto de Favelas da Maré, no entanto, é importante ressaltar que formalmente, este território não faz parte da área delimitada no decreto que foi usado como base para a lei de 1994.  O DECRETO Nº 7980 DE 12 DE AGOSTO DE 1988 da criação da XXX RA da Maré afirma que, 

Delimita a XXX Região Administrativa – Maré “Da Baía de Guanabara, na Foz do Canal do Cunha, seguindo pelo leito deste até a Avenida Brasil, por esta (incluído apenas o lado par, excluindo o Viaduto de Manguinhos) até a Rua Pirangi; daí, pelo prolongamento do alinhamento desta, até a Baía de Guanabara e, pela orla, ao ponto de partida.” 

Com essas informações sobre as mudanças que ocorreram no território, especialmente na área de habitação, ao considerarmos o número 139.073 de habitantes (Censo Maré, 2013), em comparação com os 71.579 registrados em 1988 (Censo da Universidade Federal do Rio de Janeiro), percebemos que a população dobrou em três décadas. Apesar do aumento populacional, ao longo desses 30 anos, não houveram investimentos governamentais significativos em renovação e atualização da infraestrutura capaz de acompanhar esse crescimento demográfico, resultando na óbvia defasagem e insuficiência nos serviços de água e esgoto, por exemplo.

O que faz da Maré um bairro?

Ao falarmos de um bairro, palavras como formalidade e cidadania vêm à mente, uma vez que este reconhecimento legal traz consigo (ainda que teoricamente) estratégias e soluções para a garantia de direitos. No entanto, por que esse pensamento não é imediatamente associado às favelas?

Uma das razões se dá pelo fato de que historicamente os territórios de favelas são considerados espaços informais dentro da cidade, como é o caso da Maré. Tendo em vista que essa construção em torno da ideia de informalidade, ao longo dos anos, consolidou o estigma em torno da palavra “favela” como lugar de violência e pobreza que persiste até os dias de hoje no imaginário das pessoas, inclusive nos próprios moradores destes territórios devido aos processo estruturais e sistêmicos que  impõem uma normalização para as violações de direitos.

Segundo os dados do Censo Maré,  62,1% dos moradores do conjunto de favelas da Maré se autodeclaram negros e mais da metade da populacão é composta por mulheres (51,0%). Considerando que as práticas culturais, ancestrais e de produção de conhecimento local são capazes de fornecer insumos para a compreensão da realidade deste território, é fundamental estabelecer diálogos sob esses pontos de partida para a construção de políticas públicas que estejam conectadas a essas vivências, possibilitando uma maior efetividade.

Uma recente pesquisa realizada pela UERJ sobre o cenário político nacional, aponta que pessoas negras ocupam 10,5% dos cargos de Secretários estaduais e 29,7% de Mulheres (de todas as raças). No caso da câmara dos vereadores do Rio, na última eleição (2020), considerando o total de 51 cadeiras, apenas 11 são ocupadas por pessoas autodeclaradas negras e destas, apenas 5 são mulheres.

A falta de diversidade nos cargos de gestão pública explicita a ausência de representatividade identitária e social que é fundamental para formulação de Políticas Públicas que sejam condizentes e fundamentadas em experiências concretas de pessoas que vivem a realidade dos territórios de favela.

Portanto, para além da implementação de uma Política Pública é preciso manutenção, acompanhamento, avaliação e representação socialmente engajada dentro dos espaços de poder e tomada de decisão. Como destacado acima, por muitos anos, através da organização, conhecimento e luta dos próprios moradores, muitas vezes traduzidos em iniciativas sociais locais, possibilitaram a concretização de inúmeras políticas públicas em benefício do território, como as lutas por uma moradia digna, acesso a água e luz, que remontam o histórico de muitas favelas da Maré, chegando até alguns exemplos recentes dessa incidência política popular, como a campanha Vacina Maré em 2021 durante a pandemia de COVID-19..

Por fim, ter o status de bairro tem um significado não somente simbólico, mas também prático dentro da estrutura social e na efetivação das políticas públicas, então nesse caso a Maré é um bairro que precisa ser encarado como tal já que o Conjunto de Favelas da Maré é parte integrante da cidade.

Foto: Douglas Lopes
  1.  Até o começo dos anos 80 o governo brasileiro tinha como uma das principais políticas de urbanização da cidade a remoção compulsória de favelas.
    ↩︎
  2.  O Projeto Mutirão, foi criado com atribuições explícitas de intervir na realização de obras de melhoramentos em favelas, colocando a urbanização na agenda do município, remunerando trabalhadores locais ainda que de forma embrionária. 
    ↩︎
  3.  PROFACE – Programa de Favelas da CEDAE/RJ, cujo objetivo era implantar os serviços de saneamento básico nas comunidades faveladas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
    ↩︎
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