“Na porta da Romaria, eu vi um cavaleiro de ronda, trazia um escudo no braço e uma lança na mão – guerreou, venceu, matou o dragão” – Ponto de Ogum.
Trecho extraído de um capítulo do Livro O Corpo Encantado das Ruas, de Luiz Antonio Simas, escritor, professor e historiador, mestre em história social pela UFRJ.
As ruas no mês de abril celebram, no dia 23, uma data simbólica dos encontros que deram ao Rio de Janeiro um caldo de cultura capaz de restaurar, em tempos difíceis, a fé na vida. É o dia do nascimento de Pixinguinha, e por isso mesmo o Dia Nacional do Choro. É ainda o dia da cerveja na Alemanha (a Lei da Pureza, do duque da Baviera, é de 23 de abril de 1516), da festa de São Jorge e, no norte europeu, da celebração de Sigurd, o grande caçador de dragões da saga islandesa dos volsungos.
A Legenda áurea, coletânea de relatos sobre a vida dos santos organizada por Jacopo de Varazze, arcebispo de Gênova no século XIII, apresenta a versão mais famosa sobre a imagem de São Jorge matando o dragão. Diz a legenda que um dragão monstruoso vivia perto das muralhas de Lida. A ele eram oferecidos animais. Um dia os rebanhos acabaram, e foi combinado que, por sorteio, fosse sacrificado um habitante da cidade ao bicho. A sorteada foi a filha do rei. Quando a moça já estava prestes a ser devorada, São Jorge apareceu, dominou o dragão com a sua lança, amarrou a besta e a conduziu à cidade. Prometeu acabar de vez com a fera, contanto que o povo de Lida abraçasse o cristianismo.
Na disputa entre o paganismo e o cristianismo na Europa, é possível que os atributos de Sigurd, o caçador nórdico de dragões, tenham sido amalgamados aos de São Jorge: a espada do guerreiro das terras frias foi incorporada ao mártir cristão. O dragão da cobiça e da traição, combatido por Sigurd, virou, nas encruzilhadas em que a vida acontece, o dragão da falsa idolatria combatido por Jorge da Capadócia. No calendário cristão, a celebração de Jorge é feita no dia da celebração do guerreiro volsungo.
Por aí dá para ter uma ideia de como é fascinante ver no Rio de Janeiro a imagem de São Jorge, cruzada na Europa entre a Capadócia e as terras geladas, conduzida em carreata pelo povo do Império Serrano. A imagem sai da quadra da escola, em Madureira, passa pela paróquia do santo, em Quintino, atravessa os bairros próximos e retorna à quadra no fim do dia.
São Jorge é por aqui o protetor dos apontadores do jogo do bicho, abençoa rodas de samba, puteiros e balcões de botequins, trafega pelos trilhos dos trens suburbanos, povoa o imaginário das luas cheias e derrota os perrengues daqueles que matam, diariamente, os dragões cotidianos para sobreviver e festejar.
Sigurd virou São Jorge, que virou Ogum nas umbandas. Guerreiro nórdico, santo cristão, orixá ao qual se oferece cerveja. Para apimentar mais a encruzilhada, lembro que o Kalevala – a epopeia nacional finlandesa que conta as façanhas do bardo Väinämöinen e do ferreiro Ilmarinem, aquele que, como o Ogum africano, ensinou os homens a fazer na forja o arado e os instrumentos de guerra – tem mais recitativos sobre a origem da cerveja do que sobre a origem da humanidade.
A cultura é o território da beleza, da sofisticação e do encontro entre gentes. Sigurd matou o dragão que São Jorge matou de novo, com a espada feita na forja de Ogum, parecida com a forja de Ilmarinem, para que todos acabassem aos pés do altar, batendo tambor e ouvindo um choro de Pixinguinha. De preferência tomando a cerveja do duque da Baviera e do santo guerreiro, Jorge do mundo, no terreiro e na rua.