Do “coé” ao “papo reto”, um pouco dos meandros da “Língua” mais falada nas favelas
Maré de Notícias #96 – janeiro de 2019
Por: Maria Morganti
É
difícil andar pelos mais de 5 km de extensão das favelas do Complexo da Maré
sem ouvir qualquer diálogo em que elas não estejam. Pode ser das mais clássicas
como “papo reto” ou “já é”, ou outras mais recentes, como “suave” ou “pega a
visão”. A certeza é que de gíria os moradores da Maré entendem. E inventam. E
reproduzem. Muito. Criam tanto que é até difícil saber a origem de palavras
como “mec”, “se pá” ou “na moral”. Andando pouco mais de 20 minutos pela Nova
Holanda, a equipe de reportagem do Maré
de Notícias ouviu de quase 100% dos entrevistados “que falam gírias no dia
a dia”. As mais citadas foram: “tega”, “tamo junto”, “tranquilo”, “de boa”, “é
nós”, “qual foi”, “mina”, “vacilão”, “mano”, “tá ligado”, “pega a visão”, “tipo
que” e “fala tu”.
“Gíria não é gíria, é uma outra Língua”
Segundo o professor de Letras da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), Ary Pimentel, a
periferia desenvolve uma forma nova de se falar. E como diz uma letra do cantor
Criolo, “eu não traduzo gírias”. “Eu não traduzo gíria, porque é outra Língua,
entende? A gíria não é gíria dentro de uma Língua, a gíria começa a ser outra
Língua. O Ferréz (romancista, contista e poeta brasileiro) diz que ele não
escreve em Português, e, sim, em “favelês”. Ele escreve numa outra Língua. E
ele tem a pretensão, ao longo de muitos anos de produção, de escrever para um
destinatário específico. Ele quer escrever para os moradores da própria
quebrada”, afirmou o especialista.
Tema de vídeo “bombado” nas redes sociais
Por curiosidade, as gírias das favelas cariocas viraram o
tema de uma coluna no Jornal Voz das Comunidades, escrita pelo publicitário Pedro Portugal. “Sempre que eu
conversava com algum morador da favela, surgia uma gíria no meio da frase, o
que me deixava perdido, mas curioso”. Como redator, o que mais surpreendeu
Pedro foi a boa recepção que a coluna teve. “A versão adaptada para vídeo
chegou a ter milhares de comentários e compartilhamentos. Além disso, páginas
do Facebook, como “Suburbano da Depressão”, impulsionaram ainda mais
esse movimento. Nos posts de
compartilhamento, o público comenta, sugerindo novas gírias que estão na moda.
Isso, para mim, é um ótimo sinal, sinal de que alguém está se sentindo
representado naquela linguagem”. Para Pedro Portugal, a Língua é viva e um dos
motivos de ela continuar sendo renovada são as gírias, então, conteúdo para escrever é o que nunca vai faltar.
Preconceito linguístico
Apesar do uso quase predominante de gírias por grande parte
de moradores das favelas da cidade, o professor Ary conta que, para muitos, ela
ainda é vista com certo tipo de “preconceito linguístico”. “Há certa intolerância
a uma linguagem que é usual para milhares, ou talvez milhões de pessoas na
cidade, mas que não é reconhecida como uma forma linguística que possa servir
para processar uma obra de arte, por exemplo. De certa maneira, é uma dimensão
do preconceito linguístico. Uma obra de arte poderia ser produzida a partir de
qualquer uma das linguagens que circulam, que funcionam dentro de uma
sociedade. É o caso dessa linguagem que serve muito bem para se produzir letra
de funk, para se produzir contos
dessa literatura que está surgindo com a linguagem do sujeito da periferia.
Como é o caso do Geovani Martins, autor do livro de contos ‘O sol na cabeça’,
da Editora Companhia das Letras”.
Esse mesmo tema foi abordado em uma das colunas de Pedro
Portugal, a “Nós vai te dar voz!”, de 17 de outubro de 2018:
“Se você acha que erro de Português é coisa de pobre, é em
você que está a ignorância. A Língua só possui uma função: servir e facilitar a
nossa comunicação. Então, não dá nem para tachar como errado aquilo que você
entendeu, mas fez cara feia. Além disso, presta atenção, ninguém entende mais
de plural e de coletivo do que o favelado. “Geral”, “bonde”, “tropa”, “rolé”,
uma multiplicidade de termos que mostram onde realmente mora a riqueza. Então,
dobra sua língua antes de criticar quem mantém nosso idioma vivo. O preconceito
linguístico é uma agressão àquilo pelo que nós lutamos diariamente: a liberdade
de expressão e a busca por representatividade. Praticar esse tipo de
discriminação é retirar o direito de fala de milhões de pessoas que se exprimem
com um “framengo” ou um “nós vai”. E isso, não dá para tolerar, porque buscamos
justamente o oposto, buscamos dar voz”.
Um
“idioma” territorial
Gabriela
Barros Batista, moradora da Rubens Vaz, conta que não é em todos os
lugares, principalmente fora da favela, que se sente à vontade para falar
gírias, e que, em certos locais, evita o uso para “não ser tratada diferente”.
“Eu falo gíria, normal. Gosto de falar. É claro que tem lugares que não vão
aceitar nosso jeito, mas a gente vai evitando algumas coisas para as outras
pessoas não tratarem a gente diferente. Em trabalho e em entrevista, o pessoal
não aceita muito gíria. Para o pessoal mais distante da favela, já olha assim,
‘tá falando gíria’. Quando dizem que eu falo muita, a gente tenta dar uma
evitada, se encaixar. Em várias entrevistas que eu já fiz não aceitaram o meu
jeito. Aí eu tento me encaixar em lugares que aceitam. A gente tem de se
encaixar em lugares que aceitem a gente. Tipo, eu trabalho com divulgação. É
difícil, mas a gente consegue”.
Outros dois jovens, Brener
Mauro Costa Barbosa, morador da favela de Manguinhos, e Max Campany, o rapper Sd’’, de Bonsucesso, passaram pela mesma experiência: a de
precisarem reprimir o uso de gírias do vocabulário corrente para serem aceitos
no mercado de trabalho formal. Brener avalia que elas “são muito mais informais
e normalmente são faladas quando se está entre amigos”. Por isso, tenta se
controlar e falar pouca ou nenhuma gíria. Mas confessa que nem sempre consegue.
“Quando eu comecei a trabalhar em telemarketing, eu tinha dificuldades, porque eu falava muita gíria
e tinha de me preocupar muito com a fala. Por isso, tentava falar mais devagar.
Eu tento me manter o mais quieto possível, porque às vezes as gírias escapolem
naturalmente, e quando eu vejo já saiu”, conta o jovem. Já o rapper confessa que chegou a perder uma
oportunidade de emprego por conta disso. “Antes de trabalhar com música,
trabalhava em uma firma de segurança e, por isso, evitava falar muita gíria na
hora do trabalho. O pessoal não fala gíria direto igual nós (sic). Sem contar
que, em uma entrevista, você tem de se conter. Teve uma vez que eu soltei um
‘tá ligado’, e falei, ‘ih, já era’. E já era mesmo. Não me chamaram mesmo não.
Foi sem querer, no automático. Mas, hoje em dia, eu consigo me policiar mais e,
graças a Deus, eu trabalho só com música”.
Levando
a rua
para a sala de
Para levar a rua para a sala de aula, a professora Lorena Bárbara Santos Costa, do 5º ano da Escola Municipal Gersino Coelho, de Salvador (BA), criou o “Dicionário Interativo das Gírias Urbanas”. Segundo o site http://porvir.org, nessa atividade, os alunos pesquisaram sobre as gírias faladas nas comunidades e seus respectivos significados. A iniciativa fez parte do projeto “É de Quebrada que Eu Vou”, que tinha o objetivo de valorizar a cultura popular como forma de expressão artística e ideológica-identitária.
O QUE É GÍRIA?
Gíria é um tipo de linguagem empregada por um determinado grupo social, mas que pode se estender à sociedade em razão do grau de aceitação.
(Fonte: mundoeducacao.bol.uol.com.br)