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Maré de Notícias abre edital para bolsista

Por Aline Fornel

As inscrições para o processo seletivo ocorrem até o dia 19 de Janeiro e podem ser realizadas através do link disponível nesta matéria

Através da Associação Redes de Desenvolvimento da Maré, e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) o jornal comunitário Maré de Notícias abre edital de seleção de bolsistas para integrar a equipe de uma das principais fontes de informação da Maré.

O objetivo é escolher um bolsista para uma carga horária de 20 horas semanais, atuando de forma híbrida durante um contrato de seis meses. Esta iniciativa visa fortalecer a equipe do Maré de Notícias e proporcionar uma oportunidade para estudantes dos cursos de Jornalismo, Produção Editorial e Letras.

Para participar da seleção, é necessário estar cursando, no mínimo, o 3º período dos cursos mencionados, apresentando uma declaração de matrícula recente. Além disso, é essencial que o candidato possua habilidades comprovadas em escrita e elaboração de textos jornalísticos, com conhecimentos desejáveis em WordPress, práticas de SEO e preferencialmente residência na Maré ou em bairros/favelas vizinhas.

O Jornal Maré de Notícias enfatiza o incentivo à candidatura de mulheres, pessoas negras, moradores de favelas e pessoas LGBTQIAPN+, reforçando o compromisso com a diversidade e inclusão.

O bolsista selecionado desempenhará um papel fundamental no suporte à produção de pautas, colaborando com os jornalistas do jornal impresso e online. Além disso, contribuirá na produção de conteúdo para as redes sociais e na elaboração de notas e matérias.

Equipe do Maré de Notícias realizando distribuição do jornal impresso pelas ruas da Maré . Fotografia: Douglas Lopes

Etapas de Seleção:

As inscrições para o processo seletivo estão abertas até 19 de Janeiro e podem ser realizadas preenchendo o formulário disponível neste link. Posteriormente, haverá a seleção dos inscritos e entrevistas online agendadas entre os dias 22 a 24 de Janeiro. Os resultados serão divulgados no dia 25/01 e as atividades terão início em 1 de Fevereiro.

Benefícios:

O bolsista selecionado receberá uma bolsa de extensão no valor de R$700,00 (setecentos reais), com pagamento realizado pela Superintendência Geral de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Para mais informações, acesse o edital completo.

Maioria da população indígena do Rio de Janeiro vive na Maré

Censo da Maré de 2012 e 2013, verificou que, entre as 16 favelas que compõem o território, é no Parque Maré onde a maioria da população indígena vive

Reportagem: Lucas Feitoza
Edição: Elena Wesley e Samara Oliveira
Dados: Samantha Reis
Artes e gráficos: Messias

A Maré concentra a maior parte da população indígena do município do Rio de Janeiro. É o que apontam os dados do Censo Populacional da Maré. Realizada entre os anos de 2012 e 2014, a pesquisa identificou que 0,6% da população da Maré se declarou indígena, o que equivale a 12,5% da população indígena registrada pelo Censo do IBGE de 2010.

Com coleta de dados durante os anos de 2012 e 2013, o Censo Populacional da Maré verificou que, entre as 16 favelas que compõem a Maré, é no Parque Maré onde a maioria das pessoas indígenas vivem. Das 845 que se declararam indígenas, 229 têm endereço na comunidade. 

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É o caso de Valdir Custódio, de 56 anos. Com origens em Itabaiana, município de 23 mil habitantes localizado no interior da Paraíba, sua jornada na Maré começou na infância quando, aos 1 ano de idade, ele chegou no território em 1969. Acompanhado de seu pai, Severino Custódio, de ascendência indígena, e sua mãe, Marieta Rodrigues, branca. Valdir conta que o pai decidiu migrar na expectativa de trabalhar na construção da Ponte Rio-Niterói, porém o sonho de Seu Severino não se concretizou, visto que ele não sabia nadar. Para sustentar a família, conseguiu emprego num mercado, onde trabalhou até se aposentar. Severino faleceu aos 76 anos.

Valdir e sua família possuem um comércio na Nova Holanda, na Maré. | Foto: Gabi Lino/ Maré de Notícias

Valdir lembra que morou por cerca de quatro anos em uma casa de palafita, até que a família conseguiu se mudar para uma casa de alvenaria. Durante a infância, via sua mãe pegar água nas bicas da rua, já que não havia encanamento na casa. 

Clique aqui para acessar o infográfico da pesquisa.

Seis a cada dez indígenas não vive em terras indígenas

O processo migratório experimentado pela família de Valdir é uma realidade para outros milhares de brasileiros. O Censo 2022 revelou que seis a cada dez pessoas indígenas vivem fora das terras indígenas. De acordo com a Constituição Federal de 1988, as terras indígenas são “territórios de ocupação tradicional”, cabendo à população indígena habitá-las de forma permanente e usufruir de seus bens, a fim de preservar suas atividades produtivas, seu bem-estar e sua reprodução física e cultural.

A demarcação de terras indígenas, no entanto, é um processo que enfrenta muitos obstáculos, como a ação de garimpeiros e grileiros e a pressão do agronegócio, como ocorreu em 2023, quando Câmara e Senado aprovaram o Marco Temporal, que busca restringir o direito à terra à população indígena. Sem acesso à moradia e a outros direitos básicos, a população indígena é pressionada a migrar para outros territórios, inclusive áreas urbanas. 

Valdir acredita que um dos motivos de não ter a memória da família preservada, pode ter sido a xenofobia, isto é, o preconceito pela origem, prática que era comum principalmente com pessoas nordestinas. 

O senso comum relaciona territórios indígenas apenas à Região Norte, mas o Brasil concentra diversos povos originários em todas as regiões do país. Embora a maior parte da população indigena de fato viva no Norte – são 753.357 habitantes, o que equivale a 44,5% do total, o Nordeste detém a segunda maior quantidade, com 528,8 mil, o que representa 31,2% de toda a população indígena registrada no Censo do IBGE de 2022.

População indígena cresceu cerca de 88% em 2022

O Censo 2022 registrou 1.693.535 indígenas, um aumento de 88,8% em comparação aos números coletados em 2010, quando o Censo identificou uma população de 896.917 indígenas.

A quantidade de habitantes indígenas já apresentava aumento ao longo das edições do Censo por diversos fatores, como reconhecimento de identidade e melhoria na metodologia de coleta de dados desde a primeira realização da pesquisa, em 1872. A categoria indígena passou a ser utilizada somente em 1991, superando termos como “caboclo” e “mestiça”. 

Valdir Custódio acredita que possa haver mais pessoas indígenas na Maré, que assim como ele não conhecem a sua origem.

Como funcionou a identificação de pessoas indígenas no Censo 2022

Em 2022, o IBGE ampliou a metodologia de coleta de dados para identificar pessoas indígenas, com grande participação das lideranças dos povos originários. Entre as ações implementadas estão: 

  • Aperfeiçoamento do mapeamento de aldeias indígenas, tanto nas cidades quanto nas áreas remotas;
  • Padronização da abordagem e perguntas mais claras, como “você se considera indígena?”;
  • Criação da figura do guia comunitário indígena;
  • Treinamento diferenciado para os recenseadores;

Você sabia?

A Escola Municipal Erpídio Cabral de Souza homenageia o “Índio da Maré”, famoso morador do Parque Maré e lembrado com frequência pelas pessoas entrevistadas para esta reportagem. Nascido em 11/04/1948, em uma zona rural, neto de indígenas, Erpídio chegou à Maré ainda criança. Casou-se com Ana Paula de Souza (ainda residente na Maré) em 09/11/1979, da união nasceram Geison Paula de Souza e Gláucia Paula de Souza. O “Índio da Maré” foi membro da Associação dos Moradores da Maré, onde teve a oportunidade de prestar auxílio à comunidade. Além disso, de acordo com a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, Erpídio atuou como ator na Globo em alguns episódios do “Sítio do Picapau Amarelo”. Em 1°de março de 2009, faleceu aos 61 anos, deixando um legado de lutas e conquistas para o Conjunto de Favelas da Maré.

Esta reportagem é resultado de uma parceria entre o data_labe e o Maré de Notícias.

Favelas da Maré também são marcadas pela luta indígena

Kaê Guajajara, multiartista indígena, fala sobre a representatividade indígena e a música como ferramenta de combate ao preconceito

Daniele Moura

Em torno da Baía de Guanabara, há trezentos anos, estima-se que havia 81 aldeamentos Tupinambás, onde hoje está a Maré. Pelo Censo Maré, realizado em 2013, pela Redes da Maré e Observatório de Favelas, são mais de 800 moradores indígenas  entre as 16 favelas. A maioria, mais de 200, mora no Parque Maré. 

A cantora, arte educadora, atriz e rapper indígena Kaê Guajajara chegou na Maré com 7 anos. Veio com sua família de Mirinzal, no Maranhão fugindo da escravidão que vivia.  “Minha mãe tinha 14 e 15 anos quando saiu de Mirinzal. Morávamos em um lugar onde as pessoas viviam da pesca em casas de palha, mas a terra não era demarcada. A gente vivia uma escravidão, eles chamavam de trabalho mas depois que fiquei mais consciente já aqui, olhei para a situação e percebi que  minha família era escravizada, trabalhava e recebia farinha como salário. A vida é uma caixinha de surpresas,  saí  fugindo da violência de uma terra não demarcada e olha onde eu vim parar na Maré. Dois territórios não demarcados que não são legalizados pelo Estado: são  muitas violências como  consequência da colonização,”relembra.

Kaê começou na música por meio do rap: fez parte do grupo  “Crônicos”, com dois amigos angolanos da Maré que denunciava nas letras as violências vividas na comunidade.  “A gente fez muita música juntos falando do racismo estrutural para falar sobre tudo que a gente estava sendo atingido. Foi muito massa porque foi um momento de aprendizado para eles entenderem o que que eu passei e eu entender o que eles viviam nessa sociedade racista, que  quanto mais retinto você é , mais você vai estar sofrendo na cidade. Aí percebi que os indígenas também sofrem preconceito, eu sentia também essa violência na Maré. Tanto que eu e minha mãe somos conhecidas na Maré como índias, o que não é legal. Eu começava a questionar se eu também estava sofrendo e ninguém falando. Fala-se muito muito sobre o racismo que o preto tá sofrendo mas não fala sobre o que indígena sofre dentro das favelas, então e aí eu comecei a questionar. Hoje eu já tenho consciência do que eu estou vivendo, antes eu tentava me encaixar em vários padrões, ficava em nossa não eu tenho que ser um pouco mais branca, sem me pintar, sem me vestir como meu povo.” 

Ser indígena num contexto urbano já é um desafio, e se nesse contexto o território é periférico o desafio é maior ainda. “ Eu senti na pele como é viver na cidade. Eu era tratada como alguém que nem existia, era uma menina  fantasiada, achavam que eu estava vindo de alguma festa, faltava o respeito.  Hoje por exemplo,  já se entende a cultura afro com seus turbantes e tudo mais, mas não se entende a auto estima do indígena na cidade,  a gente não tem liberdade  nem pelo viés religioso nem pelo viés cultural de usar as nossas pinturas nos ambientes de trabalho, isso ainda é visto como algo anormal. Ainda não é confortável  vê o indígena pintado, quando eu usava a saia do meu povo Guajajara era uma coisa assim como se eu tivesse fantasiada, como se eu não fosse da Maré, sendo que vivi uma vida e toda a família do meu pai é da Nova Holanda, sou cria da Maré!”, reivindica.

Sucesso na música

Atualmente Kaê faz música sobre a realidade dos povos indígenas urbanizados e, entendendo a reprodução do preconceito aos indígenas por ignorância, percebeu a música como forma potente de mudar essa realidade.  Após três singles e três Eps – Hapohu, Uzaw e Wiramiri – , Kaê lançou em 2021 o primeiro álbum Kwarahy Tazyr que significa “filha do sol” em Ze’egete” sua língua materna. “Essa consciência de que você  precisa falar sobre seu povo é um resgate.  Há de se entender as causas  de todo esse preconceito, todo esse apagamento, de como surgiu a luta,  eu entendi que independente da visibilidade que eu tenho, independente do que eu faço  com minha música, a gente está vivendo as consequências da colonização.”

Kaê é autora do livro Descomplicando com Kaê Guajajara – O que você precisa saber sobre os povos originários e como ajudar na luta antirracista. Além da música e da literatura, ela fundou o com mais amigos indígenas que moram em favelas cariocas, o Coletivo Azuruhu, que por meio da arte revela que  a identidade dos povos indígenas resiste na cidade. “A gente faz o trabalho nas escolas, cria atividade junto com a  Aldeia Maracanã para atender mais de perto. Pela arte-educação a gente mostra a realidade de nossos povos, mostra que nossa cultura está viva, claro que por meio da música também. Temos muitos projetos em andamento e outros  para botar nas ruas, para levar conhecimento de qualidade. Estamos procurando investimento coletivo. Em 2 anos a gente acredita ter ferramentas mais acessíveis  para o conhecimento  do indígena em contexto urbano. Existe uma ideia colonial que o indígena não pode transitar pelo território, não pode usar  tecnologia. Sofri inúmeros preconceitos que fizeram com que eu me entendesse nesse lugar, posso ajudar outros a não sofrerem o mesmo.”

Nos últimos anos Kaê também foi entendendo melhor questões relacionadas ao gênero e se reconheceu como uma pessoa não binária – ou seja, que se não se identifica com os gêneros masculinos e feminino. “A minha luta hoje é por autonomia, autodeclaração e demarcação. Mesmo depois do direito garantido ainda há luta pela manutenção do meu povo. Há várias terras com mercúrio e minério que os corpos indígenas vão pagar com a vida. Até demarcação de terra tem data de validade. Isso é fruto do apagamento, da colonização. Quando era pequena eu pensava que era só os brancos voltarem para Europa, hoje sou mais realista e mais otimista. Se a gente tiver mais espaço de troca, mais escuta  a gente pode mudar a realidade,” finaliza.

Povos originários

Há 522 anos o Brasil era “descoberto” pelos homens brancos. Estima-se que por aqui viviam cerca de oito milhões de indígenas em 1000 tribos. Documentos da expedição de Cristóvão Colombo relatavam aldeias que já pareciam verdadeiras cidades, abrigando até 2 mil indígenas. Mas de lá pra cá esse número reduziu drasticamente,  sobretudo entre os anos de 1600 a 1900, passando de milhões para a casa dos milhares. 

Extermínios, epidemias e também escravidão foram os principais motivos dessa redução. Foi após a década de 1980 que esse cenário mudou um pouco – aumento de 150% em 10 anos.  Nessa época o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística –  o IBGE  – passou a incluir os povos indígenas no Censo Demográfico, o que pode ter influenciado este crescimento  devido  ao aumento de pessoas autodeclaradas indígenas. 

O último Censo do IBGE  realizado em 2010  registrou 817.963 indígenas. Em 522 anos, cerca de 7 milhões de pessoas pertencentes a este povo originário deixaram de existir.  Só na última década (2009 a 2019) mais de 2 mil indígenas foram assassinados, um aumento de 21,6% em dez anos segundo o  Atlas da Violência de 2021 – foi a primeira vez que a publicação divulgou dados específicos sobre a violência letal contra indígenas.

Nos últimos 3 anos essa realidade tem sido mais dura. Com o atual presidente alinhado aos grandes interesses do agronegócio, a “boiada” de grileiros invade terras indígenas a todo momento. Só em 2019, foram registrados 113 assassinatos e 20 homicídios culposos que, somados a outros casos de violências praticadas contra a pessoa indígena, totalizaram 277 casos em 2019 – o dobro do registrado em 2018.

Em meio a esse conflito com fazendeiros, madeireiros e garimpeiros, a população indígena também sofreu com a pandemia de covid-19.  Muitos  vivem em áreas remotas e isoladas, onde uma clínica ou médico podem estar a muitos quilômetros ou dias de distância, e mesmo aqueles que vivem em centros urbanos ainda enfrentam barreiras invisíveis – como idioma, estigma e pobreza – que podem manter a atenção à saúde fora do alcance.

Ação promove atividades saudáveis e de bem estar na Maré

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Evento priorizou a vacinação dos moradores, atividades de alimentação saudável e corporal para adultos e crianças

No último sábado (13), o Eixo Direito à Saúde da Redes da Maré marcou presença na Vila do Pinheiro para o evento “Saúde na Rua”. 

A ação, que teve o apoio da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro e Fundação Tide Setúbal, ofereceu diversas atividades para a população da mareense. 

A programação contou com aulas do Yoga Maré, Oficinas de Grãos Germinados, promoção de alimentação saudável através de uma demonstração e conversa sobre a melhoria do uso de alimentos e oficina de plantas medicinais. Para a criançada, foi ofertada oficina de dança criativa e contação de histórias. 

O evento tem como objetivo estar mais presente na rua, perto dos moradores e promover saúde para além dos equipamentos encontrados na Maré. Luna Arouca, coordenadora do eixo fala sobre o encontro: “A ideia é estar disponível para a população todos os serviços, tanto das unidades de saúde, como a vacinação e saúde bucal, quanto às atividades que a Redes promove como as atividades de alimentação saudável, de saúde mental através do Yoga, de horta e nossos projetos como o Vacina Maré e o Espaço Normal”, comenta.

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E para Pedro Amazonas, de 58 anos, o objetivo do evento foi alcançado: “Me vacinei hoje e é muito importante ter um evento assim. Às vezes a pessoa não procura (os equipamentos de saúde), mas tendo atividades e informações, as pessoas podem participar aqui”, conta. 

Outro ponto abordado pelos moradores presentes foi a diversidade de atividades que os levaram a perceber que a saúde é ampla e pode ser praticada em campos distintos. Elsa Cristina da Silveira, 65 anos, conta que as atividades de yoga mudaram sua vida: “Eu tinha um monte de problemas de saúde, de dores e comecei a frequentar o Yoga da Maré e foi uma maravilha! Fiz o curso, me formei em professora, já posso dar aula de Yoga e esse evento mostra que a saúde está presente em tudo. Praticando exercício, na alimentação… e tem tudo isso aqui hoje”, diz.

Essa foi a primeira edição do evento e aconteceu no Ciep Ministro Gustavo Capanema na Vila do Pinheiro, uma das 16 favelas da Maré: 

“É uma forma de se aproximar mais da população para que ela possa conhecer as atividades que a gente realiza”, reforça Luna. 

Sementes de Marielle; confira segunda parte da entrevista com Mãe da vereadora

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Nessa segunda parte da entrevista, Marinete fala sobre as sementes deixadas por Marielle, do protagonismo de mulheres negras em espaços de poder e a partir do contexto do assassinato da vereadora, como acreditar em justiça. Acompanhe abaixo: 

MN: Como vocês esperam seguir trabalhando pela preservação da memória de Marielle? 

Lembro bem que logo após a morte da minha filha, começaram a surgir diversas fake news sobre ela, com acusações falsas e criminosas sobre a sua atuação. Mas nenhuma fake news será capaz de manchar a história de Marielle. O instituto surge também para defender sua memória, porque sabemos que o caminho para um futuro de direitos passa pelo reconhecimento da história e da memória de quem dedicou sua vida a essa luta. E um dos 4 eixos do Instituto Marielle Franco é o eixo de Memória. De 2018 até aqui, nós seguimos defendendo a memória dela para que as futuras gerações sigam lembrando quem Marielle foi e é, e o que ela representa. Afinal, nossos passos vêm de longe e nós não vamos parar por aqui: a luta de Marielle seguirá sendo espalhada e concretizada por todos os cantos. Por isso, desde que o Instituto foi criado, nossa família tem um sonho: inaugurar o Centro de Memória e Ancestralidade Marielle Franco. Um espaço físico e digital voltado para a preservação e divulgação da memória de Marielle e das mulheres negras na política que vieram antes e que ainda estão por vir. Uma casa de portas e janelas abertas, em contato com espaços de memória no mundo inteiro, para que essas histórias atravessem gerações. E, nos últimos anos, demos alguns passos importantes para plantar a semente deste projeto. 

MN: Para a senhora, especialmente, como mãe, qual o peso das sementes deixadas por Marielle? 

O Instituto Marielle Franco nasceu para cultivar a forma de atuação coletiva que Marielle defendeu em vida, e as sementes deixadas por Marielle seguem germinando e levando o legado da minha filha por todo o país e vários lugares do mundo. Nós potencializamos e apoiamos mulheres, pessoas negras e faveladas que querem ocupar a política, para que os espaços de tomada de decisão tenham mais a cara do povo. Nesse último mês de março, as sementes mobilizaram vários eventos para pedir por justiça por Marielle e Anderson. O Março por Marielle é uma plataforma de ações que já contou com a participação de pessoas espalhadas em mais de 20 países, 87 cidades e 197 ações. Como mãe, é muito importante e gratificante ver cada dia mais crescer a nossa rede sementes, comunidade de ação em que pessoas interessadas em levar o legado da Mari adiante se encontram e se fortalecem, participando de diversas ações e atividades e formando uma rede de acolhimento, afeto e aprendizagem mútuo. 

MN: As mulheres pretas estão mais presentes nos espaços de poder depois de Marielle? 

O movimento de mulheres negras brasileiras vem construindo ao longo dos últimos 40 anos uma série de avanços políticos, no que tange uma representação substantiva nos espaços de poder e de tomada de decisão, bem como na incidência por políticas públicas elaboradas a partir do referencial da população negra, em especial das mulheres negras. Cabe destacar, por exemplo, a contundente presença de mulheres negras em Fóruns nacionais e internacionais pela superação do racismo, como a III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em 2001 na África do Sul, o desenvolvimento de várias organizações da sociedade civil protagonizada por mulheres negras em vários estados do país, a primeira Marcha das Mulheres Negras em 2015, na qual reuniu cerca de 50 mil mulheres em Brasília e desempenhou a partir daí várias táticas e estratégias de articulação e participação política. Especialmente em 2016, um ano após a I Marcha de Mulheres Negras, percebemos que muitas mulheres negras lideranças territoriais se lançaram na disputa eleitoral adentrando a política institucional e Marielle Franco foi uma dessas lideranças. Marielle é e foi fruto de um ciclo histórico de avanços que o movimento de mulheres negras brasileiras desempenhava no nosso país.

Marielle marcou a política e sua atuação como parlamentar inspirou, bem como potencializou tantas outras mulheres negras nesses espaços. Após dois anos do assassinato de Marielle, nas eleições de 2020, tivemos um aumento histórico de candidaturas de mulheres negras, cis, trans e travestis, que consideramos sementes de Marielle. Apesar disso, a mesma violência política que tirou Marielle de nós, ainda sem resposta pelas autoridades, continua cada vez mais afligindo mulheres negras, cis, trans e travestis, que colocam seu corpo à disposição para a política institucional. Entendemos que tentaram interromper esse ciclo de avanços políticos com o assassinato brutal de Marielle e impedir que mais mulheres negras, de favela, LBTs, seguissem ocupando e transformando a política brasileira, mas não conseguiram. Marielle, assim como muitas outras lideranças negras, é semente e continua semeando por um mundo mais justo e um projeto de país de fato equitativo, democrático e possível, em que nenhuma pessoa seja interrompida, sobretudo mulheres negras e corpos de favela. 

MN: O assassinato de Marielle e Anderson ocorreu no marco de intervenção federal na segurança pública no Rio de Janeiro, quando Marielle repudiava a forma que os moradores das favelas estavam sendo tratados durante as operações. Infelizmente esse contexto não mudou. Com os nomes dos suspeitos a mandantes divulgados e o envolvimento do representante da Polícia Civil, que inclusive acolheu sua família no pós assassinato, como é possível para a senhora e outras mães de vitima da violência seguirem acreditando na possibilidade de justiça? 

É fato que as autoridades brasileiras não vêm oferecendo respostas efetivas diante de vítimas de violência do Estado. Como eu falei, a impunidade dessas violações contra a população afro-brasileira permite a repetição de atos semelhantes e a perpetuação do racismo estrutural. Ao longo de sua atuação, Marielle lutou junto a muitas mães das favelas por justiça pelos filhos destas. Por isso, e não teria como ser diferente, a nossa luta por justiça por Marielle e Anderson se reconhece na dor do luto e na resistência da luta de tantos outros casos de violência política de gênero e raça, de crimes contra a vida de defensores de direitos humanos e mortes produzidas pelo Estado. Sabemos que não há que se falar em casos isolados. Mirtes Renata, de Pernambuco, luta por justiça por seu filho Miguel Otávio. Ana Paula Oliveira, cria da favela de Manguinhos, no Rio de Janeiro, luta por seu filho Johnatha de Oliveira Lima, vítima letal da violência policial. Bertha Zúniga, de Honduras, luta por sua mãe, a liderança lenca Berta Cáceres. Nívea Raposo, no Rio de Janeiro, luta por justiça por seu filho Rodrigo Tavares. Também não posso deixar de mencionar o caso da líder quilombola e Ialorixá Bernadete Pacífico, que foi brutalmente assassinada dentro de sua casa, no Quilombo Pitanga dos Palmares, na Bahia, em 17 de agosto de 2023. Ela lutava por justiça por seu filho Flávio Gabriel Pacifico dos Santos, conhecido como “Binho do Quilombo”, assassinado em 2017. O funcionamento da Justiça assente todos os dias com o derramamento de sangue do povo negro.

Assim, estrutura e é estruturado por discursos e práticas que naturalizam o sofrimento infligido aos povos subalternizados e explorados nos processos de colonização, perpetuando as hierarquias sociais baseadas no gênero, na raça e na classe ampliando violações de direitos humanos e viabilizando a acumulação de capital calcada na expropriação destes mesmos povos. Em outras palavras, os meios oferecidos pelo Estado para buscar por justiça são também estruturas que fornecem sustentáculo para que outras violências brutais como aconteceu com a Mari continuem acontecendo. Nesse contexto, como buscar justiça por Marielle diante de um Poder Judiciário insulado, encastelado, majoritariamente formado por pessoas brancas? E a reparação, da onde virá, qual é o seu sentido? As respostas a estas perguntas estão sendo tecidas a partir da nossa resistência diária. E nós, familiares de Marielle Franco, movidos pelo elo profundo que nos une a ela, acreditamos que somente com a nossa ancestralidade, matripotência e protagonismo conseguiremos mudar as estruturas da sociedade e a fotografia do poder, de modo a alcançar justiça e reparação. E reparação, para nós, mulheres negras, é construir o futuro fazendo justiça ao passado. Continuaremos lutando por justiça para que a investigação sobre os mandantes avance, para que haja o devido julgamento de todos os acusados desse crime brutal que nos tirou Marielle Franco e Anderson Gomes e, sobretudo, para que a sociedade brasileira finalmente tenha as respostas às perguntas: quem mandou matar Marielle Franco e por quê? Continuamos na luta por justiça porque precisamos urgentemente mudar essa dura realidade para que a juventude negra e favelada viva e para que todos os familiares de vítimas tenham acesso à verdade, memória, justiça e reparação.