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Ataque Poético! Abra seu coração

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Maré de Notícias #87 – abril de 2018

Jovens usam transportes públicos para levar poesia para quem “nem sabe o que é sarau”

Maria Morganti

Se você estiver no transporte público do Rio de Janeiro, seja ele ônibus, trem ou BRT e ouvir gritos de um grupo de jovens, não se assuste. Pode ser um: AtaquePoético – Poetas – Favelados – Abra seu coração. Esse é o grito de “guerra/paz” com o qual o coletivo Poetas Favelados, fundado em janeiro de 2017, por MC Martina e Al Neg, inicia as suas apresentações.

A origem

Os dois são do Complexo do Alemão e “tornaram-se irmãos” – de coração, como diz Martina. Sentiam que tinham de criar alguma manifestação cultural na favela que fortalecesse a poesia e o hip-hop. Mas isso foi antes, quando, individualmente, seguiam suas correrias: produção de eventos, saraus e até um filme, “Somos Mais”, produzido por MC Martina e lançado no ano passado. O encontro entre os dois foi decisivo, mas o Poetas Favelados nasceu quando Sabrina foi a São Paulo e conheceu os Poetas Ambulantes, coletivo que distribui poesia no transporte público na capital paulista. “Eu falei, caraca, era isso. Foi uma coisa muito bonita, eu nunca tinha visto isso aqui no Rio, nada daquela energia, daquela organização, daquela forma. E aí eu falei, ‘mano, eu tenho de levar isso para o Rio’. E aí eu voltei, falei com o meu irmão Al Neg: ‘ó, cara, vamos formar o coletivo, vamos fazer isso’. Aí ele, bóra” – relembra Martina.

MC Martina, idealizadora do Poetas Favelados | Foto: Panm Fernandes

Os ataques poéticos

O coletivo chegou a ter cerca de 15 integrantes, com gente de Petrópolis e da Baixada Fluminense, batendo a marca de 50 Ataques Poéticos por mês. Primeiro no transporte público, depois em escolas estaduais, federais e municipais. “A gente entra no trem, no ônibus ou no BRT, olha pra ver se não tem nenhum camelô. Se não tiver, a gente recita. É pá-pum. Uma, duas, três poesias e passa o chapéu; porque toda vez que a porta abre e fecha, uma galera sai, outra galera entra, então é um público diferente”, – conta a idealizadora.

Passar o chapéu foi consequência da necessidade. “De início a gente não passava o chapéu, só começamos a fazer porque a gente não tinha dinheiro. Mas o nosso intuito principal, mano, é despertar o sorriso da galera, é passar a mensagem, é chamar a atenção do passageiro. Porque quando a gente vai no buzão e faz um Ataque Poético, a gente leva um sarau para uma galera que não tem acesso, para um público que não sabe nem o que é sarau”.

As reações são muito parecidas, segundo Martina, “primeiro as pessoas mantêm no rosto a cara de cansaço. Ao longo do ataque, dá até para ver um sorriso; os poetas recitam poesias próprias, além de homenagear nomes da literatura preta, periférica e marginal como Carolina Maria de Jesus, Sérgio Vaz, Conceição Evaristo e Elisa Lucinda. Elisa Lucinda, gosta e aprova: “eu adoro, combina muito com o meu propósito como artista, que é fazer a arte rodar, democratizar a poesia. E sendo jovens de favela, eu fico mais feliz por eles estarem tirando a poesia do lugar do intelectual para colocar na rua”.

A mudança

No início deste ano, o grupo passou por uma reformulação. Segundo Martina e Al Neg, ”chegou um momento que a gente estava muito mais na pista que na favela, e esse foi um dos principais motivos pra gente pensar em reformular o coletivo”, afirmam. Os idealizadores dizem que esse processo também definirá o quê e como fazer daqui para a frente. “Depois pensamos no nosso principal objetivo, que é estar dentro das favelas, dentro das escolas e em algumas faculdades”, finaliza Al Neg.

Pantera Negra – a cor do sucesso

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Maré de Notícias #87 – abril de 2018

Comunidade negra mundial transformou o filme em campeão de bilheteria

Jorge Melo

O filme Pantera Negra é um sucesso mundial. No Brasil arrecadou, nos dois primeiros fins de semana,  60, 4 milhões de reais, com 3,6 milhões de ingressos vendidos. Tem todos os ingredientes de um filme de super-herói e um vilão, que rouba a cena. A maioria dos atores e da mão de obra que trabalhou no filme é negra, cerca de 90%.

Pantera Negra conta a história de T’Challa, herdeiro do trono de Wakanda, país  rico e desenvolvido, escondido numa montanha africana, que domina uma tecnologia avançada e produz o vibraniu, um metal poderoso e muito valioso. Com medo de perder a paz, Wakanda vive isolado. T’Challa tem a missão de mantê-lo em isolamento. Mas tem um adversário à altura de um super-herói, Killmonger, que é seu primo.

Mulheres no comando

O Rio Grande do Sul tem uma das menores populações negras do País, 16,8% . Um estudo, realizado em 2010, sobre desigualdades sociais no Brasil apresentado pelo PNUD  apontou que a população negra da Região Metropolitana de Porto Alegre teve um dos piores índices de desenvolvimento humano entre as 20 Regiões Metropolitanas do Brasil. Carol Anchieta, de 36 anos, é repórter e apresentadora do Jornal do Almoço da RBS, TV gaúcha afiliada à Rede Globo. Carol considera o filme uma vitória da mulher negra: “nós, mulheres negras, sofremos com as piores condições sociais, passamos a vida objetificadas, hipersexualizadas e nos vemos no filme como guerreiras e mentes participantes de uma revolução e foi isso que provocou lágrimas em rostos negros ao redor do mundo e fez mulheres negras gritarem nas salas de cinema.”.

O super-herói que faltava

Segundo Yuri de Carvalho Lobo, “uma onda em torno de Pantera Negra, pelas redes sociais, começou antes mesmo de o lançamento do filme”. Ele tem 25 anos, é produtor cultural, morador da Maré e lembra que “existia um público que não se sentia representado no cinema, que queria ver personagens negros sem estereótipos ou em posições subalternas”.  Marcos Diniz, ator e escritor, de 31 anos, também morador da Maré, e colecionador de gibis da Marvel, diz que percebeu a importância de o diretor ser negro, nos detalhes:  “o personagem M’Baku, que nos quadrinhos é um homem vestido como gorila, no filme está bem diferente; essa imagem, no cinema, poderia ter uma conotação racista”.  O diretor Ryan Coogler é considerado uma das revelações do cinema americano e por isso foi escolhido para dirigir Pantera Negra.

 A Pantera Negra real

Pantera Negra é baseado em uma história da Marvel, que hoje é um estúdio de cinema do grupo Walter Disney. O personagem foi criado por Stan Lee, que já criou o Homem Aranha, O Incrível Hulk, entre outros. O primeiro número saiu em julho de 1966 nos Estados Unidos. Em outubro do mesmo ano, foi formalizado o partido Panteras Negras, Vanguarda da Revolução. Coincidência? Stan Lee garante que sim!

O rápido crescimento dos Panteras Negras e sua proposta radical de proteger a população negra, aproveitando a legislação americana que permite o porte de arma a qualquer cidadão, assustou o governo. O grupo foi duramente perseguido pelo FBI. Seus principais líderes foram presos ou mortos. Crimes foram forjados pela polícia contra eles. Para sobreviver, os Panteras Negras aderiram ao assistencialismo, mas perderam o discurso ousado. Se autodissolveram em 1982.

Panteras Negras   além do movimento político

A filósofa Angela Davis foi integrante do Partido Pantera Negra. A valorização do homem e da mulher negros estava entre as principais propostas. A estética do black power influenciou jovens do mundo. Existia também a saudação – braço esquerdo erguido, punhos cerrados e luvas negras.

Nos jogos olímpicos do México, em 1968, dois atletas americanos, vencedores dos 200 metros,  Tommie Smith, medalha de ouro; e John Carlos, medalha de bronze fizeram a saudação no pódio, enquanto era executado o Hino americano. O governo dos EUA usou toda a sua influência, mas o Comitê Olímpico manteve as medalhas dos atletas.

Segundo Yuri Carvalho Lobo, o filme segue um movimento mundial, de ocupação de espaço e empoderamento das comunidades negras, conhecido como Afrofuturismo, que trata também “do resgate da história dos negros e as formas de transmitir esses conhecimentos aos que virão.”  Pantera Negra arrecadou apenas na primeira semana de exibição, ao redor do mundo, 520 milhões de dólares, quase dois bilhões de reais. Portanto, mais filmes do Pantera Negra poderão acontecer. O mercado de super-heróis negros se provou viável. E para Hollywood, isso é o que importa. Outros virão.

Marielle, presente. Hoje e sempre!

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Foto: Elisângela Leite

Maré de Notícias #87 – abril de 2018

Vereadora nascida e criada na Maré é executada no Rio. O crime repercutiu no Rio, no Brasil e no Mundo

Maria Morganti

Quarta-feira, 14 de março:um calor escaldante, o termômetro bateu 33 ºC, mas a sensação térmica era infinitamente maior. Depois do expediente na Praça Floriano, s/nº, no prédio anexo, a quinta vereadora mais votada do Rio de Janeiro seguiu para um evento organizado por sua própria equipe, na Lapa, com jovens negras, para debater o movimento das estruturas contra o racismo. Às 21h04, embarcou com uma assessora e o motorista, Anderson Pedro, em um Chevrolet Agile branco.

Marielle Francisco da Silva foi sentada no lado direito, do banco de trás, seguindo pelos cerca de 3 quilômetros que separam o Bairro da Lapa do Estácio. Mãe de Luyara Santos, irmã de Anielle Silva e filha de Marinete da Silva e Antonio Francisco da Silva, o responsável por uma de suas autodenominações preferidas: “cria da maré”. Aqui, Marielle morou na adolescência até os 15 anos, no Conjunto Esperança, na altura do Palace, no Morro do Timbau; e na Baixa do Sapateiro. Seu avô paterno foi um dos primeiros moradores do conjunto de favelas da Maré, “Seu Francisco”, da Baixa do Sapateiro, que com a sua vendinha é homenageado no Museu da Maré.

Marielle Franco era presença constante nas comunidades e participou da inauguração da Casa das Mulheres da Maré | Foto: Douglas Lopes

Foi aluna, professora e chegou a ser coordenadora do curso pré-vestibular comunitário que deu origem a Redes de Desenvolvimento da

Maré. Entre idas e vindas das aulas, por causa da maternidade, aos 19 anos, Marielle chegou a ser aprovada para a primeira fase da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), mas foi na Pontifícia Universidade Católica (PUC) que formou-se em Sociologia, em cinco anos. Sempre conciliando a maternidade com o expediente,chegou a trabalhar na Viva Rio, Brazil Foundation, além de bicos em festas. Depois fez pós-graduação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e mestrado na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Administração Pública.

Quem viu a socióloga ser eleita em 2016, com o número de votos que ela sabia de cor, 46.502, não consegue imaginar que para ela, nos primeiros 100 dias de mandato, o lugar ainda não era “uma zona de conforto”. “Eu não estou no viaduto de Madureira, não estou na favela chamando a galera, não é isso. Tem todo um aparato da linguagem, da disputa linguística, da narrativa, do decoro. Se deixar, você passa a mudar o tom de voz, a forma”, contou em maio de 2017.

E para quem entrou na política institucional só por causa do contato com o então professor de História da irmã, que falava sobre a vida na favela, e esperava no máximo 27 mil votos, Marielle sacudiu o Rio. Com menos de 100 dias de tribuna já tinha apresentado dois projetos de lei. Ao todo foram 16. Todos voltados para seu foco de mandato: mulheres negras e pobres, como o “Projeto de Lei das Casas de Parto” em lugares com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), aprovado em outubro do ano passado.

No entanto, apesar de causas voltadas para esse grupo social, maioria esmagadora de moradoras de periferia, foi na Zona Sul  que a novata no Palácio Pedro Ernesto conquistou o número mais expressivo de votos: a maioria no Cosme Velho e Laranjeiras, seguido por bairros como Botafogo, Flamengo, Gávea e Leblon. Na Maré, Bonsucesso e Ramos recebeu tímidos 1.688 votos. Mas em todas as urnas do município teve pelo menos um voto para Marielle Franco.

A homenagem da Maré

Para responder uma pergunta sobre ambições políticas, Marielle disse, em 25 de maio de 2017, “hoje sei que cumpro um papel político que é mais amplo que eu, que é de um grupo de mulheres que se identificam, que é de um grupo de favelados e faveladas que se identificam. Sem querer ser retórica e poética. É objetivo”. Pouco mais de 10 meses depois, um carro parou ao lado do que estava Marielle e disparou 13 tiros. Quatro deles foram na sua cabeça. O motorista, Anderson Pedro, também foi atingido e morreu. Pouco antes das 22h, um site já anunciava a tragédia. O texto foi compartilhado nos grupos de aplicativos de mensagem. A esperança de que fosse uma fake news se esvaiu quando da declaração oficial, menos de uma hora depois. Um temporal caiu e ninguém conseguiu dormir.

No dia seguinte, às 11h, centenas de pessoas se reuniram na Cinelândia. A maioria vestia preto e debaixo do sol quente se abraçava, chorando, com um silêncio aterrador. Na tarde do mesmo dia, os corpos de Marielle e Anderson foram velados na Câmara de Vereadores, em cerimônia fechada para os familiares. O enterro foi no Cemitério do Caju, em seguida. Na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro outra manifestação, que seguiu com uma passeata com destino à Cinelândia.

No domingo seguinte, 18 de março, moradores, ativistas e Organizações Não Governamentais (ONGs) da Maré fizeram outro ato em homenagem a Marielle e a Anderson. Nesse dia, a impressão era que a tristeza estava dando lugar para a revolta e  energia para a ação.

A comoção pelo mundo

Marielle durante uma campanha “Somos da Maré: Temos Direitos!” | Foto: Douglas Lopes

Os protestos em repúdio ao atentado contra a vida de Marielle causaram comoção em todos os cantos do Brasil e do mundo. A Coordenação Nacional de Entidades Negras de Minas Gerais, entre outras 19 organizações e movimentos mineiros, afirmou por meio de Nota que, “Belo Horizonte se junta, nesse momento de dor e indignação, a todas as comunidades do Conjunto de Favelas da Maré e ao Rio de Janeiro, para expressar solidariedade às pessoas queridas do convívio de Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes”. Uma das cantoras mais famosas do mundo, Katy Perry, em show no Rio de Janeiro, no domingo, 18 de março, também fez uma homenagem à vereadora, com a presença no palco de suas familiares, Anielle e Luyara.

A Polícia Militar manteve-se distante do caso, inclusive dos atos públicos, que foram tranquilos e ordeiros, mas o Coronel da Polícia do Rio de Janeiro, Robson Rodrigues, homenageou Marielle em um post no Facebook: “ela defendia muito mais nossos policiais do que nós fomos capazes de compreendê-lo e de fazê-lo”.

Enquanto as ruas exibem cartazes com escritos como “Quem matou Marielle e por quê?”, há um esforço consciente dos que acreditam na democracia de compensar a perda pela multiplicação da força com que ela pautava a sua vida, em nome das causas nas quais acreditava. Também por isso, gritam em coro: “Marielle, presente. Hoje e sempre!”

 

 

Maré tem plano de redução de danos

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Maré de Notícias #87 – abril de 2018

O objetivo é reduzir a mortalidade da população

Jorge Melo

Mortos, feridos, serviços públicos paralisados, comércio fechado, violações de direitos. Esse é o saldo das intervenções policiais e dos conflitos armados na Maré, em 2017. Segundo dados do Boletim Direito à Segurança Pública na Maré (*), foram 42 mortos e 57 feridos, 41 em operações policiais e 16 vítimas de confrontos entre grupos civis armados. Em virtude das operações, os postos de saúde ficaram 45 dias fechados e as escolas 35, o que equivale a 17% dos dias letivos sem aulas.

A pesquisadora Fernanda Mendes Lages Ribeiro, do Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli, da Fiocruz, faz um alerta: “apesar da frequência deste fato, ele não pode ser banalizado como algo que faz parte da vida em determinados locais da cidade, como Maré e Alemão. Certamente, pode-se esperar efeitos nefastos em salas de aula, expressos individual e coletivamente pelas crianças e adolescentes, que podem vir a desenvolver problemas de comportamento e sofrimento psíquico””

Segundo dados do ISP – Instituto de Segurança Pública, as polícias Civil e Militar do Estado do Rio de Janeiro foram responsáveis por 1.124 homicídios decorrentes de intervenção policial em 2017, seguindo a tendência de aumento do número de mortes em operações policiais iniciadas em 2014.

Segundo Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional no Brasil, “os números mostram que a insistência na estratégia de operações de ’caça’ ao tráfico varejista de drogas ilícitas não reduz a violência e, ainda por cima, faz com que tenhamos a polícia que mais mata e mais morre do Brasil”.

O Plano de Redução de Danos

O primeiro semestre de 2017 foi particularmente doloroso para a Maré. A violência foi três vezes maior que no segundo semestre.  Uma das operações policiais durou mais de 10 horas e fez com que o coletivo Maré que Queremos, juntamente com a Redes da Maré e outras instituições, fossem até o Plantão Judiciário do Tribunal de Justiça do Rio pedindo o fim daquela operação. Essa ação foi acolhida pela Defensoria Pública e resultou numa Ação Civil Pública, que determinou algumas exigências para a realização de operações policiais na Maré, como viaturas com GPS e câmera, acompanhadas de ambulâncias e também a elaboração de um Plano de Redução de Danos e Riscos das incursões policiais na Maré pela Secretaria de Segurança Pública do Rio.

Como a Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio anunciou a incapacidade de fazer o Plano, o Coletivo Fórum Basta de Violência, outra Maré é possível elaborou uma proposta de Plano de Redução de Danos às Violências na Maré, que foi resultado de debates realizados ao longo de 2017, por moradores da Mare?, instituições governamentais e não governamentais e lideranças comunitárias. O objetivo era responder a uma pergunta: “o que o Estado pode fazer para diminuir a violência na Mare??”

 

Intervenção Federal: o tempo passa e a tensão aumenta

Maré de Notícias #87 – abril de 2018

Passado mais de um mês da assinatura do inédito decreto, entenda o que é e relembre um pouco o que já aconteceu

Maria Morganti

No dia 16 de fevereiro, os moradores da Maré, que assistiam TV ou estavam ouvindo notícias no rádio, e ficaram sabendo do decreto de intervenção federal, assinado pelo presidente Michel Temer, devem ter se lembrado do período no qual as Forças Armadas ocuparam o conjunto de favelas, entre abril de 2014 e junho de 2015,a imagem dos tanques de guerra e das roupas camufladas. Mas aquele anúncio, da sexta-feira após o Carnaval, feito na hora do almoço, vai muito mais além das nossas memórias.

A intervenção federal deste ano, é a primeira, desde a Constituição de 1988. Quem tem menos de 30 anos, nunca viu nada parecido. Diferentemente do período pré-Copa do Mundo e Olimpíadas, em que os homens das Forças Armadas estavam na Maré para realizar a “Operação São Francisco”, regulada pelo dispositivo da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), agora a intervenção federal transfere os poderes do governador, relacionados à Segurança pública, para o interventor.

Garantia da Lei e da Ordem – GLO

Em geral, uma GLO autoriza apenas uma atuação pontual, de mais ou menos tempo, de ajuda das Forças Armadas à Segurança pública de uma cidade ou Estado. Um morador que preferiu ter a identidade preservada, diz que a presença do Exército em 2014 não resolveu nada. “A única coisa é que não andavam armados pela rua, mas todo dia davam tiros, todo dia tinha uma confusão. E depois que eles foram embora tudo voltou a ser como era antes”, contou.

A intervenção federal é autorizada pelo Congresso Nacional (Câmara e Senado Federal,) o que aconteceu em menos de cinco dias; transfere os poderes ao interventor e dá total autonomia sobre as Polícias Civil, Militar, Corpo de Bombeiros e a Secretaria de Administração Penitenciária. O indicado pelo presidente foi o comandante Militar do Leste, general Walter Souza Braga Netto.

Assim como em 2014, a intervenção federal tem data para acabar. A previsão é 31 de dezembro, quando as polícias e o próprio governador, poderão recuperar a autonomia.

Laboratório do medo

A população das favelas teme a intervenção. E existe uma razão. Desde o ano passado, está em vigor uma lei que transfere à Justiça Militar o julgamento de crimes cometidos por militares das Forças Armadas em missões como essa da Vila Kennedy, que é considerada pelo interventor como um laboratório.

No dia 23 de fevereiro, fuzileiros navais tiraram fotos de moradores ao lado das carteiras de identidade, uma espécie de fichamento preventivo, já que nenhum dos fotografados havia cometido qualquer ilícito. Os posts sobre a ação viralizaram nas redes sociais e provocou revolta em coletivos de favela como o Papo Reto, do Complexo do Alemão, que se manifestou no Facebook: “como nos pontos nazistas de controle de corpos, o Rio de Janeiro vira palco nacional da desigualdade racial, de classe, e todos os preconceitos que possam existir. Quero ver fazer um checkpoint [ponto de verificação] no túnel da Zona Sul ou da Barra, aí não peita! Só quer esculachar o pobre”.

Em discurso na 37ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU- Organização das Nações Unidas, em Genebra, na Suíça, no dia 7 de março, o alto comissário para Direitos Humanos, Zeid Ra’ad Al Hussein fez um alerta. “No Brasil, eu estou preocupado com a recente adoção de um decreto que dá às a Forças Armadas autoridade para combater o crime no Estado do Rio de Janeiro e coloca a polícia sob o comando do Exército”.

Segundo o historiador Carlos Fico, professor do IFCS, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da UFRJ, “o balanço da intervenção até agora é ‘muito ruim’, além de inconstitucional”.  Ele afirma que a Constituição diz que a União não deve interferir nos Estados, exceto em casos de “grave comprometimento da ordem pública”. Carlos explica que não tinha acontecido nada excepcional, como transportes paralisados, falta de energia, e, sim, a continuidade de problemas crônicos. “Por isso que eu digo que além de inconstitucional, a intervenção é irresponsável, principalmente por não ter havido um planejamento que previsse ações de represália das organizações criminosas em resposta à intervenção”, concluiu.

Águas de março fechando o verão…

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Maré de Notícias #87 – abril de 2018

Chuvas da estação mais quente do ano alagam muitos pontos da Maré

Hélio Euclides

Fevereiro e março foram meses de muita chuva, superando a média do ano. Tradicionalmente, as chuvas desse período sempre trazem preocupação para os cariocas. Na madrugada de 15 de fevereiro, um morador da Maré morreu durante o temporal que atingiu o Rio de Janeiro. A chuva foi a maior da história da cidade, num período de uma hora e teve muitos raios. A tempestade causou falta de energia, alagamentos e derrubou diversas árvores na Maré.

Quando se fala do escoamento das águas da chuva, muitos acham que a coleta é feita pelos bueiros redondos no meio das ruas. Contudo, esses são de esgoto domiciliar. A coleta da água da chuva é feita pelas bocas de lobo [bueiro retangular de água pluvial], que levam tudo para a Baía de Guanabara. Quando elas entopem, acontecem os alagamentos. “A Prefeitura precisa ver os bueiros retangulares e valões, pois tem morador perdendo móveis quando chove”, resume Vilmar Gomes, o Magá, presidente da Associação de Moradores do Rubens Vaz.

Em Marcílio Dias, moradores de três ruas têm problemas crônicos. O Beco Jardim América, “quando chove, fica alagado e a água se mistura com o esgoto que vaza de tubulação saturada, e nada dá vazão”, diz o morador José Correa. Na Travessa 21 de Abril e na Travessa Bom Jesus, segundo os moradores, é preciso trocar a canalização das águas pluviais. “Aqui ocorre enchente, perdi estante, rack e guarda-roupa. Tenho medo da chuva, pois já sofremos com o esgoto entupido”, afirma Lucilene Maurício.

Na Vila do Pinheiro, a quadra da Via B/3 sofre há 11 anos com alagamentos. Outro lugar é o Conjunto Pinheiro, entre os prédios e a localidade conhecida como Marrocos. A situação é difícil também na Rua Ivanildo Alves e na Praça do 18, que sempre enche e que, na chuva de fevereiro, registrou uma vítima fatal. O lixo é o vilão dos alagamentos, “a Rua Ivanildo Alves sofre com o estigma de ser suja e, frequentemente, é o local de descarte de lixo. Um espaço que padece com a violência e era necessária uma ressignificação. É preciso uma articulação, somada a uma dinâmica dos serviços públicos”, comenta a bióloga Julia Rossi.

Lixo na rua, sinal de enchentes

Quando se fala de águas pluviais vem a questão do lixo, que jogado no chão aumenta o impacto das enchentes. Em Marcílio Dias, a Associação retirou de dois becos 20 carrinhos de lixo de toda espécie. Para Samanta Gleicy, moradora do Beco Jardim América, a solução dos alagamentos depende dos dois lados, poder público e população. “Quando chove, quase tem de sair nadando, não dispenso botas. Tem que trocar os canos e asfaltar. Mas o morador não pode colocar lixo na rua, canso de falar isso, e perco até amizades”, critica.

A Comlurb informa que os serviços na Maré incluem coleta domiciliar diária, varredura diária das vias principais, roçada, capina, poda das árvores, controle de vetores e limpeza e conservação dos mobiliários urbanos e praças. A empresa pede aos moradores que utilizem os equipamentos de limpeza instalados na comunidade e colaborem, respeitando os dias e horário da coleta, evitando descartar lixo em local indevido. Quem tem entulho de obras e móveis velhos, deve solicitar o Serviço Gratuito de Remoção de Entulho, pelo telefone 1746 e site.

O superintendente de Ramos, Hildebrando Gonçalves Rodrigues, o Del, diz que o prefeito autorizou a Rio Águas e a Secretaria Municipal de Conservação a agirem nos pontos mais crônicos, como Rua da Conquista, na Nova Holanda, onde está sendo construída uma rede de drenagem interligada à Rua Principal. Segundo ele, nas Via B/3 e Via A/1, na Vila do Pinheiro, já começaram trabalhos de dragagem e limpezas dos canais. Uma boa notícia é o retorno do projeto Guardiões dos rios, que retira lixo dos valões. Nesta mesma linha, está previsto um projeto-piloto de contenção no valão do Salsa e Merengue.