Com as dificuldades encontradas para comprovar endereço, moradores de favelas e periferias têm percurso mais complicado para tirar título de eleitor
Por Luiz Menezes*, em 01/10/22 às 8h
O direito ao voto de forma direta, secreta e com valor igual para todos foi promulgado pela Constituição de 1988, que restaurou os direitos políticos dos brasileiros, após 24 anos de ditadura militar. Acontece que, atualmente, ainda há um enorme número de pessoas que não conseguem exercer sua cidadania por meio do voto. De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o país conta com mais de 156 milhões de eleitores aptos a votar em 2022. O que os dados omitem são as dificuldades que alguns brasileiros encontram para emitir e regularizar o título de eleitor. A razão é o elevado número de documentações exigidas pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE), como o comprovante de residência. O documento é algo simples em outras zonas da cidade, mas ainda é difícil para uma parcela significativa dos moradores de favelas e periferias.
“Em regra, a falta de endereço pode prejudicar o acesso a direitos e que por isso, há a necessidade de reconhecimento dos locais ditos ‘informais’ pelo município. Na Maré, há ruas não receberam nomes oficiais. Neste caso, onde não houver comprovante de residência, pode-se utilizar uma declaração feita a próprio punho para tirar o título de eleitor”, explica Maurício Dutra, pesquisador e articulador do Eixo de Direitos Urbanos e Socioambientais da Redes da Maré.
Acontece que o comprovante de residência de próprio punho não é possível para 6.302 pessoas, entre 15 anos ou mais, que não tiveram acesso a alfabetização, como mostra o Censo Populacional da Maré, divulgado em 2019.
Simone Soares (42), mãe, comerciante e moradora da Nova Holanda, é uma das pessoas que refletem esse número de pessoas não alfabetizadas. “Eu não consigo escrever um comprovante de residência de próprio punho. Quando eu preciso de um comprovante consigo com a associação de moradores”, diz.
É nesse cenário que as associações de moradores atuam com o serviço de emissão de comprovante de residência. “Aqui na associação custa R$ 5. Quando a pessoa não tem como pagar não deixamos de fazer. O valor cobrado pelo comprovante é utilizado como uma ajuda de custo. Pagamos os funcionários que trabalham com a gente e as despesas administrativas”, relata Gilmar Rodrigues Gomes Junior, o Juninho (41), presidente da Associação de Moradores da Nova Holanda.
O líder comunitário ressalta que uma parceria com a Prefeitura seria importante para expandir o fornecimento dos comprovantes de residências de forma gratuita. O serviço varia de R$ 5 a R$ 30, dependendo da associação. “As associações devem oferecer esse serviço porque estamos mais próximos dos moradores, mas a Prefeitura deveria ajudar a gente com um suporte financeiro e estrutural mínimo, para àqueles que não conseguem pagar também tenha acesso”, cobra.
Cidadania Insurgente
“A falta de documentação é um tema transversal, que dialoga com a exclusão e a desigualdade tão marcantes na sociedade brasileira. Em geral, são pessoas pobres ou muito pobres, de baixa escolaridade. Também se relaciona com o racismo e o machismo estruturais”, relatou Fernanda da Escóssia, autora do livro “Invisíveis”, em entrevista para o jornal O Povo, em outubro de 2021.
A Maré é reconhecida oficialmente como bairro desde 1994, mas não tinha seus endereços reconhecidos pelos órgãos oficiais até receber parte significativa dos moradores. Sem comprovação de residência, muitas pessoas ainda não conseguem ter acesso aos direitos básicos garantidos pelo Estado. Tal situação evidencia a fragilidade da democracia brasileira, se pensar que é por meio deste que se escolhe os representantes políticos do país.
O conjunto de favelas da Maré, com cerca de 140 mil habitantes, possui massa eleitoral com possibilidade de eleger prefeitos de diversas cidades do Brasil, como Maricá, por exemplo.
Para Shyrlei Rosendo, coordenadora do Eixo de Direitos Urbanos e Socioambientais da Redes da Maré, garantir o direito ao endereço dos moradores foi o que motivou a instituição a construir o Guia de Ruas da Maré (2014). “Fizemos a cartografia na Maré, e quando estávamos nesse processo, vimos que muitas das ruas não eram reconhecidas pelos órgãos oficiais e nem tinham CEP. Dentre os objetivos do Guia de Ruas está incidir junto ao poder público para que os moradores tenham direito ao endereço.”
É o caso de Hélio Flauzino (69), cozinheiro e morador da Marcílio Dias, uma das 16 favelas da Maré, conhecida por Kelson. Ele só conseguiu regularizar seu título de eleitor por conta do mutirão realizado pela Empresa Poética, coletivo de jovens que busca promover ações de impacto, e a Associação de Moradores da Nova Holanda. “Se não fosse pelo mutirão que me ajudou a escrever um comprovante de residência a próprio punho, não iria conseguir votar esse ano”, desabafa Hélio, não escondendo a felicidade e gratidão pela ajuda que recebeu.
Daniel Wicke (22), estudante de direito e orientador jurídico, esteve à frente dos mutirões realizados na Maré que atenderam, segundo ele, cerca de 300 pessoas diretamente. “Nossos mutirões aconteceram nos dias 09, 22 e 28 de abril. Atendemos em média 300 pessoas no total. Foi um sucesso, tivemos uma procura muito maior do que conseguiríamos atender”, avalia.
Para ele, o motivo da imensa procura é por conta das diversas exigências que esses processos apresentam. Além de nem todos saberem manusear aparelhos tecnológicos e terem internet. “Emitir e regularizar o título de eleitor é um procedimento que poderia ser feito por qualquer pessoa pelo site “título.net”. Acontece que muitas pessoas não possuem celular ou computador. Muita gente não tem nem internet aqui na favela. Quando tem, ainda encontram muita dificuldade por conta de tantos documentos exigidos, em especial o comprovante de residência que muitos não tinham no dia”, analisa.
Os usuários que buscavam por esse serviço também tinham características em comum. “A maioria das pessoas que atendemos eram moradores da Maré, mas que vinham de outras regiões, principalmente do Nordeste”, finaliza o jovem.
*Comunicador da primeira turma do Laboratório de Jornalismo do Maré de Notícias