200 anos da independência do Brasil: D. Pedro I foi realmente o ‘cara’?

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Jorge Melo*

A independência do Brasil completa 200 anos. Para marcar a data será reaberto hoje (07/09), o Museu do Ipiranga, em São Paulo, depois de nove anos fechado por falta de segurança; e três anos de obras; que custaram 235 milhões de reais. No Museu do Ipiranga estão depositados, desde 1972, os restos mortais daquele que é considerado o herói da Independência: Dom Pedro I. Mas será que podemos atribuir nossa independência a um único homem?

Para comemorar os 200 anos de independência, o Governo Federal, por intermédio do Ministério das Relações Exteriores, trouxe de Portugal, por empréstimo, o coração de Pedro I, preservado em formol desde 1834, data da sua morte, aos 36 anos. Há quem considere mórbido esse tipo de celebração. Uma exposição, que terminou no último domingo (04/09), “Um coração ardoroso: vida e legado de Dom Pedro I”, foi montada no Palácio do Itamaraty, em Brasília, para exibir a relíquia. 

Autora de uma biografia crítica, “Dom Pedro I: um herói se nenhum caráter” (Cia das Letras, 2006) a cientista política Isabel Lustosa, pesquisadora do Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa, em Portugal, afirma que o governo não planejou ou preparou um evento para comemorar os 200 anos da independência: “Só restou fazer algum tipo de espetáculo em torno do pedaço do corpo de alguém que pediu para ser enterrado em Portugal”. 

Um dos últimos desejos de Dom Pedro I foi que seu coração fosse mantido na igreja da Lapa, na cidade do Porto, em Portugal. Pedro foi imperador do Brasil, de 1822 a 1831, quando abdicou em favor de filho Pedro II, na época com cinco anos, para voltar a Portugal e lutar pelo trono português para sua filha, Maria da Glória.

Lembranças da ditadura

Trazer o coração de Dom Pedro I para comemorar a independência não é uma ideia original. Em 1972, quando completamos 150 anos de independência, o general Emílio Garrastazu Médici, presidente e ditador (1969-1974), pediu ao governo português, que na época também era uma ditadura; a cessão definitiva dos restos mortais de Dom Pedro, I para a celebração do Sesquicentenário da Independência. Os portugueses cederam. 

O Brasil vivenciava na época um dos períodos mais sombrios da sua história, com prisões, torturas, assassinatos políticos e opositores que desapareciam depois de presos. Além de censura à Imprensa, ao teatro, ao cinema, à música, ao rádio e à televisão. Desde 31 de março de 1964, quando foi dado o golpe que derrubou o presidente João Goulart (1961-1964), vivíamos um regime autoritário, comandado pelos militares, mas com apoio civil. Deputados e senadores podiam apenas concordar com os ditadores sob a ameaça de ter os mandatos cassados e os direitos políticos suspensos por 10 anos. Muitos opositores do regime se exilaram. 

O país, no entanto, vivia também um momento de crescimento, o chamado Milagre Econômico. Ao contrário da classe média, os trabalhadores pobres não chegaram a se beneficiar com o crescimento da Economia que, durante os chamados “Anos de Chumbo”, crescia em média 10% ao ano. Uma das maiores taxas de crescimento do mundo. A máxima do ministro da Fazenda, Antônio Delfim Netto, era “vamos deixar o bolo crescer para depois dividir”. Os mais pobres, entretanto, nunca receberam a sua fatia. 

Médici, o terceiro presidente do ciclo militar (1964-1985), queria aproveitar o bom momento para mostrar ao mundo o “novo” Brasil e reforçar o patriotismo da população. Os restos mortais de D. Pedro I passaram, de março a setembro, por todas as capitais brasileiras, até serem depositados definitivamente no Museu do Ipiranga, no dia sete de setembro de 1972. 

História oficial

Na escola aprendemos que no dia sete de setembro de 1822, D. Pedro I, nascido em Portugal, em 1798; então príncipe regente do Brasil, às margens do riacho Ipiranga, em São Paulo, decidiu tornar o Brasil independente. Por 322 anos estivemos ligados a Portugal. Como colônia, de 1500 a 1808; ou como sede administrativa do Império Português, de 1808 a 1821, quando Dom João VI retornou a Portugal com a sua corte. Pedro I foi príncipe regente de 1821 a 1822 e imperador de 1822 a 1831.  

Segundo a versão oficial, D. Pedro teria recebido a informação de que a corte de Lisboa reduzira seus poderes como príncipe regente, no Brasil, onde representava seu pai, Dom João VI. Dom Pedro I teria então declarado a separação irreversível entre Brasil e Portugal. A tradição consagrou essa narrativa e o famoso quadro pintando por Pedro Américo, “Independência ou Morte”, palavras que teriam sido proferidas por Dom Pedro I, ao desembainhar a espada e dar o famoso grito do Ipiranga, consolidou o mito. O quadro foi pintado 66 anos depois, na Itália, onde morava o pintor. E é uma criação/invenção de Pedro Américo. Na há, segundo Isabel Lustosa, nos jornais da época, “nenhuma referência ao que se passou nas margens do Ipiranga em 7 de setembro. O primeiro relato detalhado do episódio só foi publicado em 1826”. 

A pesquisadora lembra que “a Independência foi produto de uma série de fatores e da ação de alguns homens. Não foi planejada. Com o início dos trabalhos das Cortes (depois da volta de D. João VI a Portugal), ficou claro que não era isso que queriam os portugueses. Insatisfeitos com o grande atraso econômico no qual Portugal mergulhara depois da partida de D. João e vendo esse atraso como causado pela maior autonomia que o Brasil adquirira, desejavam fazer o Brasil voltar ao sistema anterior. Foi a isto que reagiram os brasileiros.”

A Revolução Constitucionalista, que aconteceu em Portugal em 1820, na cidade do Porto, era uma revolução com caráter de monarquia constitucional: a ideia era uma reforma dentro da monarquia, mas o rei se submeteria ao que o parlamento definisse.

Ao contrário do que o título do livro, “Dom Pedro I: um herói se nenhum caráter” leva a crer, Isabel Lustosa reconhece qualidades e a importância Dom Pedro I, como, por exemplo, a decisão de ficar no Brasil, contrariando os interesses de Portugal. 

D. Pedro I teria dado um sinal no sentido da independência, quando se recusou a acatar as ordens de regressar a Portugal no famoso “Dia do Fico”. Ele ficou e com poderes absolutos, mas que logo seriam limitados pela força militar, com muitos portugueses nos comandos, que aqui estava. O príncipe regente, entretanto, contava com o apoio das elites brasileiras, que não aceitavam o retorno do país à condição de colônia. 

A pesquisadora destaca também, o importante papel que a nascente Imprensa brasileira exerceu no processo de Independência. Segundo ela, desde a publicação do Correio Braziliense, em Londres, iniciada em 1808, passando pelos jornais que começaram a ser publicados no Rio em 1821, começaram a ser difundidas ideias de maior autonomia econômica e política para o Brasil. “Depois da Revolução Constitucionalista do Porto (1820) e do início dos trabalhos das Cortes em Lisboa, os debates entre deputados portugueses e brasileiros, repercutiam na imprensa e contribuíam para acirrar os ânimos. Os jornais brasileiros foram fundamentais para que D. Pedro decidisse pelo “Dia do Fico”, em 9 de janeiro de 1822 e pela Constituinte Brasileira, em 3 de junho de 1822, etapas que levaram ao 7 de setembro”, explica.  

Pactos entre elites

Segundo Isabel Lustosa, autora também de “Insultos Impressos: a Guerra dos Jornalistas na Independência’ (Cia das Letras, 2000), para os pobres, escravizados e negros libertos, a independência teve pouco significado. “Em 1822, o povo mal ouviu falar da Independência porque esse tipo de assunto não lhe dizia respeito. Afinal, o chicote que cortava as costas das vítimas da escravidão não se tornaria menos violento se o Brasil fosse independente. Mesmo os cidadãos alfabetizados, com algum nível de conhecimento, mas sem posses, não teriam direito a voto na nova ordem, pois, pelo sistema censitário estabelecido pela Constituição de 1824, que duraria até a República, só votava quem tivesse renda”.

Onde começa?   

Em 1808, o então rei de Portugal, Dom, João VI, com a família real e cerca de 10 mil nobres portugueses (não há registros precisos), fugiu para o Brasil, temendo que o francês Napoleão Bonaparte o fizesse refém. Napoleão queria fazer da França o grande país da Europa. Para tanto, com seu poderio militar, impôs um cerco econômico à Inglaterra, seu adversário direto. Os países europeus que comercializassem com os ingleses sofreriam retaliações. 

Portugal era um antigo aliado da Inglaterra a quem também devia muito dinheiro. As tropas de Napoleão invadiram Portugal em novembro de 1807, mas o rei e sua corte já estavam em alto mar. Com a estrutura administrativa transferida para o Brasil, deixamos de ser colônia. A comitiva real chegou ao Rio de Janeiro no dia oito de março de 1808, depois de uma escala de mais de um mês em Salvador, onde aportou no dia 22 de janeiro. 

Em abril de 1821, Dom João VI volta para Portugal, depois da expulsão dos franceses. E deixa Dom Pedro I como príncipe regente. Mas Antes de partir Dom João VI limpou todos os cofres e levou os recursos disponíveis. Ao longo de 1821, as discussões nas Cortes de Lisboa deixavam claro que o movimento liberal português pretendia submeter Pedro I ao controle do Congresso e restabelecer o poder de Lisboa sobre o restante do império.

Dom Pedro estava dividido entre conservar a sucessão ao trono português ou construir um império no Brasil. Aproximou-se dos moderados da elite brasileira, homens que haviam frequentado a Universidade em Portugal e exercido funções na administração no império. 

Depois do Dia do Fico, Dom Pedro I declarou inimigas tropas portuguesas que desembarcassem aqui sem consentimento, concordou em convocar uma Assembleia Constituinte, publicou documentos que exaltavam a fraternidade entre os integrantes do Império português e nos quais a independência aparecia no sentido de autonomia política. Entretanto, para a maioria dos integrantes da nossa elite político-econômica, a separação já estava consumada. 

Dona Leopoldina e a primeira dívida

Certamente você pouco sabe sobre Dona Leopoldina, a mulher de Dom Pedro I, e primeira imperatriz do Brasil.  No entanto, ela cumpriu um papel importante no processo de independência, pois agiu diretamente para o convencê-lo a seguir o caminho da ruptura com Portugal, ao perceber que o clima político poderia conduzir o país a uma república.   

Isabel Lustosa lembra que Dona Leopoldina “entendeu que era mais interessante para os seus filhos, herdeiros da Casa da Áustria, ficarem no Brasil com mais poderes do que irem para Portugal na mesma situação em que D. João, submetido à Assembleia”. 

Leopoldina estava convencida de que era possível negociar a libertação do Brasil da tutela portuguesa em troca de uma monarquia constitucional apoiada pela elite brasileira. Cabe lembrar que foi ela quem presidiu a reunião emergencial que definiu a nossa independência. A carta enviada após essa reunião fez com que d. Pedro a declarasse em 7 de setembro de 1822.

A independência, porém, monetariamente falando, teve um preço salgado. De início o novo país foi reconhecido pelos Estados Unidos. No entanto, “para consolidar essa posição necessitava que a antiga metrópole, Portugal, nos reconhecesse. A Inglaterra intermediou um acordo diplomático, assinado em agosto de 1825, o Tratado de Paz e Aliança. Pelo acordo, o Brasil deveria pagar uma indenização de dois milhões de libras esterlinas a Portugal. Os cofres estavam zerados (lembram de D. João VI?), não tínhamos condições de pagar. Os ingleses, então, emprestaram os recursos garantindo o pagamento. Detalhe, os portugueses tinham uma dívida de igual valor com os ingleses. Ou seja, começamos nossa vida independente como parte de uma transação duvidosa e já devendo”.

*Jorge Melo é jornalista formado pela Eco-UFRJ, mestrado em História Social-UFF e Doutor em História, Política e Bens Culturais pelo CPDOC-FGV

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