Por Ane Alves , estudante, 17 anos e moradora da Maré
Em 22/06/2018
Os fogos pareciam uma versão violenta daquela kombi que passa anunciando “30 ovos por 10 reais!”. Já os fogos diziam “30 mortes por 1 operação!”.
Fechei os olhos e me escondi embaixo da cama.
O helicóptero da polícia voava tão baixo que parecia que estava dentro da minha casa… Embaixo da minha cama, comigo. Me apertei ainda mais contra a boneca que eu segurava. Fechei os olhos e pensei na minha irmã, que estuda bem ali na divisa (entre a Baixa do Sapateiro e a Nova Holanda) e na minha mãe, que estava trabalhando ali no Fundão.
Fechei os olhos pensando nas crianças que estavam na escola ou em casa. Pensei nas tias que vão pra Vila Olímpica nesse horário.
– Tra, tra, tra, tra, tra! –
Ouvi mais uma rajada. O helicóptero atira sem parar contra o asfalto. Fechei os olhos mais uma vez.
Ouvi um grito. Um grito desesperado. Ouvi alguém gritar:
– “Meu filho!”
Mais um que se foi. Mais uma mãe que grita de dor. Mais uma mãe que teria que confrontar a mídia ao afirmar que o filho não era bandido.
E se ele fosse? O que o sistema tinha feito pra impedir? O sistema matou mais um. Mais um pra conta do governo que está no vermelho há tantos anos que, talvez, seja impossível pagar.
O sistema tira um pouquinho da gente todos os dias. Só entram na favela durante a época de eleição, a fim de reacender aquela chama de esperança de que as coisas vão melhorar, para depois atirarem sangue nela pra apagar.
“Mais um…”
Pensei que eu poderia ser a próxima “Mais um…” na estatística de mortes dentro da favela.
O sistema é foda! Ele é falho, fraco e opressor. Não assegura uma oportunidade de não ser bandido mas, já de primeira, sempre nos chama de bandido. Marginaliza ao invés de desenvolver.
Minha Maré sofre repressão há tantos anos, que é impossível um cálculo exato de tamanho sofrimento e resistência.
A gente sangra todos os dias. A cada operação é um anúncio:
– “30 mortes por 1 operação!”
São 30 não só aqui mas também na Rocinha, Alemão, CDD, entre outras. Pro sistema, bandido só tem na favela. Mas quando eles vão perceber que os bandidos…são eles?
– Tra, tra, tra, tra! –
Mais uma rajada. Mais um grito. Mais um aperto no coração e mais uma mãe chorando.
Respirei fundo e fechei os olhos, me preparando para o próximo grito.
A tal guerra não é contra o tráfico é contra a gente, é contra quem ta vivendo na base do sistema e tem que lutar todo dia pra existir e resistir. Afinal… viver na base é resistir, ou melhor lutar para sobreviver.
“Aqui estou, mais um dia.
Sob o olhar sanguinário do vigia.”
-Diário de Um Detento,Racionais MC’s