A anima e o animus

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“Dentro de todo homem existe o reflexo de uma mulher, e dentro de cada mulher há o reflexo de um homem.” Hyemeyohts Storm, índio americano.

Por Marcello Escorel em 14/08/2021 às 7h

O que muitas vezes me angustia quando demoro para escrever esta coluna é o fato de ter que escolher um tema deste universo tão variado. Tento optar por aqueles que falem diretamente ao meu coração e que sejam relevantes para encontrarmos um rumo, enquanto indivíduos da espécie humana, para chegar à construção de um mundo mais pleno de compaixão e justiça. Além da tentativa, sempre que possível, de fazer um “link” com a realidade de fatos contemporâneos.

Leio pelo menos um livro a cada coluna. O último chamado “Parceiros Invisíveis” trata de nossas contrapartes sexuais no inconsciente: a anima, arquétipo feminino atuante no homem e o animus, arquétipo masculino atuante na mulher. Vou abrir um parêntesis para tentar definir o que seriam os arquétipos.

A tartaruguinha que corre para o mar assim que sai do ovo, uma revoada de pássaros que migra milhares de quilômetros numa determinada estação do ano são exemplos de comportamentos herdados pelas espécies. Não foram ensinados. A esses fenômenos, especificamente de cunho biológico e fisiológico, chamamos instintos. Além deles, a espécie humana também traz gravados o que Jung chamou de arquétipos: padronagens de cunho psicológico e emocional responsáveis por construir nossa vida anímica e equilibrar o mundo interior com a vida do dia-a-dia na sociedade.

Esse par de arquétipos, a anima e o animus, estão diretamente relacionados com a paixão que unem os casais e, porque não dizer, que muitas vezes os separam, podendo conduzir romances que iniciam com a sensação idílica do paraíso a um desfecho trágico como podemos observar em muitos casos tanto na vida real como na literatura (Carmem, Madame Bovary, Ofélia de Hamlet , etc).

Jung considerava a integração destes arquétipos a obra prima do trabalho analítico. Os alquimistas, precursores tanto da química quanto da psicologia, eram da mesma opinião. O elixir da longa vida era simbolicamente apresentado como o casamento de um par real e o nascimento de um filho hermafrodita, a pedra filosofal.

Confesso que ainda caminho trôpego no processo de compreender a anima e foi por isso que senti um grande desconforto debruçado sobre o papel em branco. (Escrevo primeiro num caderno e só depois de muitas ratificações passo ao computador para as alterações finais). Cheguei a tentar outro tema menos espinhoso como o arquétipo do herói e só saí da sinuca de bico, mais uma vez, com a ajuda do inconsciente, socorrido por um sonho e uma nova sincronicidade. O último fator assinalado foi o aniversário da lei Maria da Penha que trata dos crimes contra a mulher. No sonho estava sentado à janela de um ônibus lançando “frisbees”(aqueles discos de arremessar) e tentando seguir suas trajetórias. Um deles flutuou até estacionar sobre o chapéu de uma mulher, muito parecido com o brinquedo. Ela dirigia um carro estilo rabo de peixe. Foi uma indicação de que devia seguir minha meta original e discorrer sobre a mulher interior que as civilizações antigas veneravam como deusas.

Por que nos apaixonamos à primeira vista? No estado de paixão é como se conhecêssemos a pessoa de outras vidas e, em certo sentido, é isso mesmo, mas não de vidas passadas e sim de nossa vida interior. Uma das características fundamentais dos arquétipos é que eles estão continuamente, automaticamente, inconscientemente se projetando em figuras concretas do mundo cotidiano. Sendo assim toda paixão no fundo é uma paixão por si mesmo. É inegável que este mecanismo é necessário para estimular o início de um relacionamento entre duas pessoas, mas trata-se apenas do pontapé inicial. A projeção de nossas contrapartes sexuais inconscientes nunca resiste à prova da convivência diária que é o que determina a passagem da paixão para o verdadeiro amor, esse sim um mistério insondável até para a psicologia. Lembremos de Don Juan, o mito literário do homem incapaz de amar verdadeiramente, pulando de uma paixão, ou projeção, para outra, sempre enredado por sua incapacidade de trabalhar sua feminilidade e que termina sendo tragado para as profundezas do inferno.

Quando a anima de um homem se projeta sobre uma mulher específica ela se transforma na mais desejável de todas, a fonte de todo prazer e felicidade, objeto de inúmeras fantasias eróticas e sexuais. Estar com ela parece o suficiente para atingir a plena realização. A mulher nesses casos, a princípio, pode sentir-se lisonjeada e valorizada percebendo a força e a ascendência que tem sobre o homem apaixonado. Com o tempo, porém, certamente irá descobrir que o homem começa a sufocá-la. Como diz John A. Sanford, autor do livro Parceiros Invisíveis: “Ele a vê não como ela realmente é, mas como ele deseja que ela seja. Ele a deseja para satisfazê-lo, e continuar vivendo sua imagem feminina projetada irá colidir com a realidade humana dela como pessoa … Quando ela insiste em ser ela mesma, pode constatar que seu homem fica com ciúmes, ressentido e carrancudo … Além do mais, a projeção positiva pode ser substituída, de repente e sem aviso prévio, pela projeção negativa … A mulher que um homem já amou alguma vez e que era considerada uma deusa pode, com a mesma facilidade, ser vista por ele como uma bruxa. Então ela se torna tão desvalorizada quanto uma vez já foi supervalorizada” .

E aqui temos o nosso “link” com a questão da violência contra a mulher e o feminicídio. Nós homens ainda estamos engatinhando quando se trata de confrontar-nos com nossa contraparte feminina. Avessos a discutir os relacionamentos de igual para igual, encouraçados no medo de ter de conviver com mulheres reais que tem suas próprias prerrogativas, desejos e projetos, estamos sujeitos a ser dominados por rancores e ódios inconscientes, possíveis geradores de violência.

Somente quando estivermos aptos a reconhecer nossas características femininas é que poderemos esvaziar as mulheres reais de nossas projeções e aí “quem sabe, o super-homem possa nos restituir a glória, mudando como um deus o curso da história, por causa da mulher”. (Gilberto Gil) 

Marcello Escorel é ator e diretor de teatro há mais de 40 anos. Paralelamente a sua carreira artística estuda de maneira autodidata, desde a adolescência, mitologia, história das religiões e a psicologia analítica de Carl Gustav Jung

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