Parcerias com Ministério Público e Defensoria, campanhas informativas, plantão em dia de operações policiais são algumas das iniciativas do Eixo de Segurança Pública da Redes da Maré
Adriana Pavlova
A cena, até outro dia, poderia parecer um sonho para os moradores da Maré. Num transporte oferecido pelo Ministério Público do Estado do Rio, um grupo formado por parentes e vítimas de violências policiais segue em direção ao Centro do Rio de Janeiro para um encontro com Procuradores da Justiça do Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (GAESP) do Ministério Público do Rio. Há um misto de ansiedade e preocupação. Ao chegarem, escutam uma palestra sobre seus direitos e, em seguida, cada vítima ou parente tem a chance de ser ouvida de forma particular e exclusiva por um promotor, com total privacidade para, a partir daí, os representantes do Ministério Público Estadual buscarem informações sobre inquéritos ou mesmo instaurar procedimentos. Aos poucos, a tensão vai dando lugar a rostos mais relaxados. Na volta, a caminho da Maré, todos parecem bem mais tranquilos.
“As vítimas de violência ou seus parentes esperam uma explicação. Se há inquérito já aberto, é importante informar como está transcorrendo”, explica a procuradora Viviane Tavares Henriques, coordenadora do GAESP, apontando para uma nova fase dentro do próprio Ministério Público. “Nós do Ministério Público sentimos a necessidade de não ficar mais trabalhando só no papel, distantes. Queremos mais diálogo com as comunidades, como a Maré. Queremos cada vez mais aproximação, atendendo e analisando os casos de perto. Mas, sobretudo, trabalhar preventivamente para que as violações não ocorram. Não queremos apenas a punição, não queremos mortes, queremos que nada disso aconteça e para isso temos de trabalhar antes.”
A visita de vítimas de abusos policiais ao Ministério Público do Estado do Rio, organizada em parceria com o Eixo de Segurança Pública da Redes de Desenvolvimento da Maré, é mais um dos resultados concretos do trabalho diário da Redes buscando a ampliação de direitos dos moradores do território da Maré. Um trabalho árduo que envolve diretamente uma equipe de cinco pessoas que, nos últimos anos, tem ampliado suas ações: indo para as ruas divulgar, de casa em casa, os direitos dos moradores; criando novas parcerias com Órgãos de Justiça e instituições civis; fazendo circular informação de violações da polícia contra a população, tão comum em favelas, ou tentando intervir em casos de abusos de policiais militares ou civis em dia de operação na Maré, atendendo aos moradores com auxílio de assistente social e advogado; e ajudando a barrar – por meio de liminar – operações policiais noturnas na favela, o que é proibido por lei, mas que muitas vezes não é respeitado.
“Experimentamos estratégias, porque o espaço da Segurança Pública no Rio de Janeiro e no Brasil é muito frágil. Nosso trabalho é pensar numa prática de Segurança cidadã, com ações coordenadas que se encaixem na realidade da vida na Maré. O nosso principal foco é o morador da Maré”, diz a Assistente Social Lidiane Malanquini, coordenadora do Eixo de Segurança Pública da Redes da Maré.
Telefone para ajudar em dia de operação policial
Uma das ações mais importantes e que, ao mesmo tempo, têm dado resultados concretos é o plantão da equipe do Eixo em dias de operação policial nas comunidades da Maré, iniciado em 2016. Há um telefone disponível (99924-6462) e, caso os moradores peçam ajuda, uma dupla de profissionais se dirige ao local para mediar conflitos. A simples presença de profissionais como advogado e assistente social já costuma arrefecer a truculência dos policiais. As demandas vão desde a denúncia de arrombamento de casas até o pedido para acompanhamento de pessoas presas, que não são levadas imediatamente para a delegacia e correm mais risco de sofrerem violência.
“Fazemos uma mediação entre a polícia e a população. O clima de uma operação policial na favela é tenso, nada agradável, mas quando nós chegamos o trato é outro. Infelizmente, a polícia ainda tem a convicção de que a favela é um território sem lei, de que as pessoas não vão lutar por seus direitos”, explica a pedagoga Shyrlei Rosendo, da equipe do Eixo de Segurança Pública.
Como as ações de Segurança Pública são todas interligadas, um projeto ou uma campanha acabam se conectando de forma natural. Assim, os dados de violação colhidos durante o Projeto de Acompanhamento Permanente das Ações das Forças de Segurança Pública, por exemplo, muniram a primeira edição do Boletim Direito à Segurança Pública na Maré, lançado em 2017, com informações de 2016. Segundo a publicação, no ano passado aconteceram 33 operações policiais na Maré, com 17 mortes em decorrência de intervenção policial e 20 dias de atividades suspensas nos serviços públicos de educação e saúde.
Dados tão alarmantes confirmam a necessidade de trabalho contínuo junto aos moradores, como a campanha “Somos da Maré. Temos Direitos”, que tem como objetivo divulgar o que é legal e ilegal durante abordagens policiais. O projeto teve início em 2012 e ano passado, a partir da demanda dos próprios moradores, ganhou uma segunda edição. Como num trabalho semelhante ao de formiguinhas, a equipe do Eixo de Segurança sai sempre em duplas para visitar residências nas diferentes comunidades da Maré. Até hoje, já conseguiram visitar – e muitas vezes revistar – cerca de 50 mil domicílios.
“É um trabalho pedagógico, processual, não adianta ir somente uma vez, é uma conversa, porque é preciso absorver todas as questões, sentir que o morador está pronto para lutar pelos seus direitos e que ao mesmo tempo não está só”, diz a pedagoga Shyrlei.
Operação policial de 2009 foi marco
Historicamente, o Eixo de Segurança Pública da Redes da Maré tem origem num trabalho de acompanhamento de famílias de alunos das escolas da região que participavam do Programa Criança Petrobras na Maré, nos anos 1990. Nos atendimentos, surgiam questões relacionadas às violações de direitos e violências domésticas. Até que, em 2009, uma operação policial na Maré deixou marcas muito fortes. Segundo se recorda Núbia Alves, Assistente Social e Advogada, a situação foi tão crítica que se percebeu a necessidade mais premente de um trabalho focado em Segurança Pública: “morreram 14 pessoas naquela operação, tudo foi fechado, foi uma situação nunca vivenciada aqui. Naquele momento, tivemos certeza de como o acesso à Justiça é difícil para quem mora na favela. Nós acompanhamos os moradores, os ajudamos a fazer o Registro de Ocorrência”, lembra Núbia.
Defensoria Pública
Neste processo, uma parceria importante é com o Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública (NUDEDH) do Estado do Rio de Janeiro, firmada oficialmente em 2016, mas construída desde 2014. A Defensoria presta assessoria jurídica para os moradores vítimas de violência ou mesmo a parentes das vítimas, a partir das denúncias recebidas na Redes.
“Os abusos praticados pelos policiais, que são agentes do Estado, tornam-se uma violação grave. Se o Estado gerou a situação de risco, há direito à reparação.”, explica o defensor público Daniel Lozoya Constant Lopes, que ressalta que qualquer vítima de policiais durante uma operação pode pedir reparação ao Estado, até mesmo sem conseguir comprovar o abuso.
Esta parceria com a Defensoria também foi fundamental para uma liminar inédita que garantiu, em junho de 2016, a suspensão de operações noturnas de buscas em casas da Maré. A proibição de busca domiciliar durante a noite já é prevista na Constituição, mas frequentemente era desrespeitada nas favelas. A liminar deu início a um processo que visa traçar parâmetros jurídicos para as operações policiais nas favelas, com obrigatoriedade de prestação de contas e transparência.
O ouvidor-geral da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Pedro Strozenberg, afirma que todo o trabalho de garantia de direitos e os debates sobre a Segurança Pública promovidos, hoje, na Maré beneficiam e repercutem no Rio de Janeiro como um todo: “as propostas discutidas e formuladas pela Redes da Maré falam do Rio. A presença em conselhos de direitos, as articulações e campanhas trazem um pertencimento da Redes, que valoriza e afirma o território, mas dialoga com as políticas gerais.”