Maré de Notícias #91 – 31/07/2018
Para todos os gostos, quase todos os dias da semana o ritmo de quem é bom da cabeça e não é doente do pé
Maria Morganti
Quinta, sexta, sábado e até domingo. Na Nova Holanda, Vila do Pinheiro ou Piscinão de Ramos. O que não falta nas 16 favelas da Maré é opção para quem quiser curtir um samba ou um pagode, com direito à cerveja gelada e música da melhor qualidade, é claro. “O samba sempre foi forte aqui na Maré, porque é raiz, não tem como você tirar. Em qualquer lugar o samba é forte. Não tem isso ou aquilo. O samba está na raiz do povo brasileiro, não vai se perder nunca”, constata Alexandre de Mello Gonçalves, o Dão, integrante do Grupo Nova Raiz do Samba.
Nascido no Morro da Formiga e “cria” da Baixada Fluminense, dos 41 anos de vida 25 foram vividos no samba. Mas foi por outro ritmo que Dão veio parar na Nova Holanda: “eu vim pra conhecer o famoso baile do CIEP da Nova Holanda. Nessa época que eu frequentava baile funk, fui vítima de violência. Fui agredido sem ter feito nada. Dois dias depois eu queria me vingar. Acabei me envolvendo em briga de corredor e depois já estava até praticando alguns atos criminosos. Eu sinto até vergonha, mas tenho de falar, porque eu sirvo como exemplo pra mostrar que com oportunidade você consegue mudar a direção das pessoas. Tem uma música do Bezerra da Silva que fala que “se não fosse o samba, quem sabe hoje em dia eu seria do bicho”, porque a vida é complicada. Nesse momento da minha vida, digamos que o samba me escolheu. O moleque apareceu na minha porta lá e o samba me levou em lugares que eu nem imaginava. Viajei Brasil afora por causa do samba, foi uma grande oportunidade na minha vida”.
Batucada boa
O “moleque” a quem Dão se refere é um menino que ficava “que nem um maluco, tocando sozinho na rua”. Até que ele próprio, depois de ver um amigo morrer enquanto assaltava e experimentar a paternidade, tudo ao mesmo tempo, começou a “brincar com ele”.
“Eu sempre gostei de samba, na época do Morro da Formiga, a gente descia pra carregar água no botijão, no galão de água, e ficava batucando, cantando as músicas do Almir (Guineto), do Bezerra (da Silva). Aí veio tudo na minha memória de novo. Eu falei, ‘eu sei fazer isso aqui’. A gente começou a interagir com aquele pagode, a fazer churrasco… Tinha um amigo que tinha um cartão de crédito legal, aí fomos na loja e compramos uma porção de instrumentos, caixa de som, microfone. Aí todo domingo a gente fazia o nosso pagode”. Dão conta que, na época, já existiam alguns grupos na comunidade e que eles começaram a seguir também, como o Grupo Lá Samba, da Maré.
Para Pedro Artur da Silva, o Pedrinho, de 34 anos, morador de Rubens Vaz e integrante do Grupo Fundamental, o que não faltou foi inspiração. Tanto do Nova Raiz, de Dão, como do Lá Samba. “A gente tem os grupos antigos daqui como espelho nosso, tem o grupo La Samba, a galera que hoje é o Nova Raiz. São uns caras que a gente já assistia tocando e já servia de inspiração pra gente”.
O Samba na Maré
“Eu vejo bem o samba na Maré, tem uma galera boa trabalhando firme. Porque durante muito tempo houve muita dificuldade pra você registrar o seu trabalho, você gravar discos se não tivesse gravadora, se não tivesse um grande empresário, você sozinho não conseguia. Hoje você consegue fazer um trabalho, você tem as redes sociais que te ajudam. Tem uma galera boa aí na Maré trabalhando firme”, conta Dão.
Já Pedrinho tem outra visão: “eu tenho uma opinião muito polêmica. Primeiro, a gente é muito desvalorizado. As pessoas não acreditam nos grupos que tem aqui, mais por parte das pessoas que contratam. Porque você vai dar um preço pra fazer um show e a pessoa quer te diminuir, e isso é ruim. E a outra coisa é que os grupos não são unidos. A gente no Fundamental preza muito essa união e a gente vê muito o desprezo dos outros”.
Samba ou Pagode?
Os dez anos que separam os integrantes do Grupo Nova Raiz e do Fundamental não fazem diferença quando o assunto é “samba x pagode”. “O pagode e o samba, na verdade, são a mesma coisa. Só que hoje a gente usa o pagode pra falar das músicas mais românticas, mais lentas, porque tem o partido alto, o samba, o samba de escola de samba. A diferença é mais na batida, na levada de como você conduz a música. A gente defende o samba e pra mim o samba é muito amplo”, explica Pedrinho.
Dão só é um pouco mais contundente: “isso é de uma ignorância tremenda. Porque não existe diferença, tudo é samba. É igual rock. Tudo é rock, tem o metal, tem o rock mais pro lado romântico. Tem várias vertentes. Eu não vejo tanto separatismo. A não ser para o fã, para o ouvinte, cada um tem seu gosto. Agora, para os músicos não pode haver esse tipo de interferência, não pode existir essa coisa do preconceito. Muitas portas se abriram por causa do pagode dos anos 1990. Muitos hoje que batem no peito dizendo que são sambistas, porque tocam numa roda de samba mais tradicional, começaram a ouvir esses ritmos, Katinguelê, Negritude Júnior. Daí o cara começa a conhecer a estrutura do pagode que eles tocam, tem pandeiro, tem cavaco, tem surdo, tem violão, tem tantan, tem repique é samba. Sendo que é uma outra linha de samba. É um universo apaixonante e que não pode ser fechado para uma vertente ou para outra”.
Fundamental sem fronteiras
A música “Dê outra chance” do grupo Fundamental cruzou a fronteira da Maré e é uma das mais tocadas na cidade de Campos Novos, em Santa Catarina, no Sul do Brasil, segundo Pedrinho. “É uma música estourada aqui na comunidade e está em primeiro lugar lá. Isso fez com que a galera goste de nós, mesmo sem a gente entender”, conta rindo.
Dão diz que, para ele, o melhor momento da roda de samba é quando “todo mundo está cantando”. “O Nova Raiz não tem vocalista, todo mundo canta. Aliás, a gente nem gosta de cantar, a gente gosta de ver os outros cantando, o povo. Quando está todo mundo cantando na roda de samba é o melhor momento que tem”.
E o público reconhece o sucesso: “que papai do céu abençoe o grupo Fundamental, vocês ainda vão chegar muito longe, pela humildade de vocês”, diz pelo áudio do WhatsApp um fã, arrancando lágrimas de Pedrinho. “Quem não entende muito bem são as nossas esposas, porque tem o ciúme e tal”, confessa o músico.