Maré de Notícias #95 – Dezembro de 2018
Primeira edição do WOW na América Latina evidencia a força das mulheres, principalmente as das periferias
Por: Maria Morganti
Enquanto milhares de pessoas, a maioria mulheres, cruzavam a Zona Portuária, que inclui o Museu do Amanhã, o Museu de Arte do Rio (MAR) e o Armazém 01 do Píer Mauá, durante os três dias da primeira edição, na América Latina, do Festival Mulheres do Mundo – WOW, era possível observar novos laços de força sendo criados a todo momento. No primeiro dia, na sexta-feira, 16, pouco depois das 9h, uma mulher que estava chegando ao Museu do Amanhã, disse que esperava “ver muitas trocas entre mulheres de vários lugares do mundo pra trabalhar mais juntas, entender quais são as sinergias, as semelhanças e as diferenças, e o que a gente pode fazer juntas para continuar na luta pela igualdade de gênero”. A expectativa da mulher, anônima, se concretizou: foi exatamente esse o resultado dos três dias de Festival.
Histórias da Maré para o mundo
Segundo a organização do Festival, essa troca é um dos objetivos fundamentais do Festival. Mas o WOW Rio não foi só isso. Foi mais, bem mais. Além de receber cerca de 30 mil pessoas nos três dias de evento, com mesas, debates, territórios de partilhas, mentorias e shows, como o da Elza Soares, Karol Conká e Flora Matos, o que aconteceu no WOW foi a conexão de muitas mulheres, que talvez não tivessem nunca a oportunidade de se conhecerem se não fosse por ali. Muito menos de ter a possibilidade de saber um pouco das histórias de potência, superação, dor, criatividade e coragem que existem em lugares como o Conjunto de Favelas da Maré.
Para jogar essas histórias no mundo, as “Wowseiras”, um grupo de 15 meninas, moradoras de favelas da Maré, colocaram para rodar – literalmente – as histórias de vida de mulheres que já são exemplo de força e garra dentro da comunidade e que, por meio do Festival, puderam ser contadas para quem quisesse ler e ouvir. Nos dias do Festival WOW Rio, elas atravessaram em uma kombi cerca de 11 km que separam a Maré da Zona Portuária. Vestidas com saia de um tecido em que era possível escrever, andavam pelo evento com a história de vida de mulheres como Marielle Franco, ex-vereadora brutalmente assassinada em março deste ano, no bolso. Além de contar essas histórias, ouviram muitas outras. “Uma mulher compartilhou a história dela comigo, me contou que viveu um relacionamento abusivo e o Festival foi o primeiro evento que ela foi depois do fim do relacionamento. Disse também que ela estava quase voltando pra ele (o abusador) e ali recuperou forças pra sair de vez dessa”, conta Ana Clara Alves, uma das “Wowseiras”.
Ana Clara acrescenta ainda as “marcas” conquistadas e compartilhadas por ela e suas parceiras no Festival. “O legado que a gente vai deixar é ter levado um pouco das histórias das mulheres da Maré para o Festival. Nós mostramos que tivemos mulheres fortes na nossa fundação e que essa força que tem aqui dentro vem de algum lugar. Acho que o legado foi ter mostrado um pouco dessa força fora da favela e ter tocado as pessoas”.
Mais saias rodando
Outro grupo de mulheres da Maré que colocou a saia para rodar foi o das participantes da Mandala Florestal. Inês Di Maré, coordenadora da apresentação, explica que a Mandala Florestal é uma meditação em movimento, com músicas e coreografias. O Grupo de cerca de 40 mulheres, com idade média de 50 anos, se apresentou na tarde do primeiro dia de Festival, durante cerca de 40 minutos, num cortejo que saiu da frente do Museu do Amanhã e foi até o palco principal. “Foi maravilhoso. Mandala é paz para o mundo”, disse, em êxtase, uma das participantes ao final da apresentação.
“O processo foi surpreendente, porque nós convidamos as mulheres da Maré para fazer a Mandala para o Festival e acabamos descobrindo que elas têm o desejo de formar um grupo de mulheres que faça um trabalho que envolva o corpo, meditação, um momento de partilha e de construção de um espaço de troca entre elas. Elas desenvolveram uma liderança circular. Foi muito bonito, porque isso foi acontecendo no processo. Elas ficaram ensaiando em torno de cinco semanas e, hoje, depois do evento, elas têm até um grupo no WhatsApp”, afirma Inês. Para a coordenadora, essas mulheres construíram o sentimento de que elas se sentem mais fortes, mais bonitas, mais capazes de conseguir fazer coisas que antes não faziam, como o autocuidado, o acompanhamento de saúde e estudar com mais concentração.
Legado imensurável
Apesar de serem incontáveis e imensuráveis a quantidade de conexões e os frutos que a primeira edição da América Latina do Festival Mulheres do Mundo ainda serão capazes de gerar, já há um tesouro materializado. Durante o processo de construção do Festival, a organização do evento fez um levantamento das instituições, associações e organizações voltadas à proteção de direitos da mulher na cidade do Rio, para compreender melhor o contexto e a relevância da atuação política nesse âmbito no Rio de Janeiro. O resultado foi um mapeamento, o primeiro do gênero, que identificou 204 líderes locais e 235 organizações governamentais, não governamentais e do setor privado, atuantes em áreas como justiça, saúde, arte e cultura, academia, ciências e pesquisa, mídia e comunicação. Atuações que vão desde a palhaçaria, para mulheres vítimas de violência doméstica, até grupos de dança.
O documento está disponível no site http://www.festivalmulheresdomundo.com.br/. É só clicar na parte “O Festival” e, depois, em “Mapeamento”. O mais interessante é que ele é aberto, ou seja, continua podendo ser alimentado com novas iniciativas o tempo todo.
Há frutos que ainda estão sendo adubados. A jornalista Viviane Duarte, CEO da ONG Plano Feminino (plataforma pioneira, criada para promover um novo jeito de fazer conteúdo para mulheres), falou, em uma das “Mentorias: Vidas em Conexões”, sobre o seu desejo de trazer o projeto “Plano de Menina”, que incentiva garotas a descobrirem o seu potencial e serem protagonistas de suas histórias, para o Rio de Janeiro.
Emocionada, Viviane disse que criou o projeto “Minha Menina dos Olhos” inspirada na falta de oportunidade de estudar para muitas das suas amigas de infância, envolvidas no tráfico ou perdidas por outros caminhos, como ela. Nesse momento, até a repórter, que aqui vos escreve, chorou. Depois, constatou que outras mulheres também se emocionaram com histórias que se pareciam muito com as suas ou com dores que jamais poderiam ter, mas que as tocaram só pelo fato de serem vivências exclusivas da mulher. Além do expressivo número de participantes, das lágrimas, dos sorrisos e dos abraços, o Festival Mulheres do Mundo foi um alento. Uma oportunidade de as mulheres se enxergarem só para dizer umas às outras, mesmo sem precisar proferir uma só palavra: “estamos juntas”.