Por: Eliana Sousa Silva – Diretora da Redes da Maré
“Eles combinaram de nos matar
Nós combinamos de não morrer”
(Conceição Evaristo)
Faz um ano que tudo aconteceu e, além da tristeza, um paradoxo se faz presente: Marielle nunca esteve tão presente em nossa vida social. Nas paredes, nos eventos, até mesmo no carnaval. Os assassinos pensaram que a matando fisicamente atingiriam algum objetivo. Ao contrário, apenas fortaleceram a nossa indignação e sede de justiça, dentre tantos sentimentos que nos mobilizam. Ela virou um esteio para a luta, e não só das mulheres negras das periferias. Um autêntico símbolo que alimenta a nossa história. E, por isso, não podemos deixar de buscar a verdade: quem a matou? Por que? Onde podem chegar? Não descansaremos enquanto as respostas não virem à luz. O crime revelou também uma verdade incômoda sobre nossa sociedade: a permanência do ódio escravocrata e o interesse na continuidade de um sistema social, político, econômico e cultural desigual, misógino e racista, estruturante da vida no país desde a sua gênese.
O homicídio de Marielle coloca luz sobre o alarmante problema que são os assassinatos de ativistas sociais, outra violência que marca a luta por direitos no Brasil. Segundo a Comissão Interamericana dos Estados Americanos, três em cada quatro assassinatos de ativistas no mundo ocorrem na América Latina – sendo o Brasil o primeiro onde mais se mata. Em 2016, foram 56 homicídios de ativistas, aumentando para 66 em 2017, de acordo com dados da Anistia Internacional. Em 2018, segundo a Global Witness, registraram-se 57 mortes somente até o mês de agosto.
O que esses números revelam sobre a devida proteção necessária por parte do Estado com as pessoas que se expressam, questionam e atuam na mudança do sistema no qual vivemos? O que ocorre é que essas mortes estiveram invisibilizadas, pois concentradas, na sua maioria, em áreas distantes da realidade urbana. Tristes mortes de pessoas dignas e generosas, que lutam pelo acesso a terras, preservação da natureza e/ou pelo reconhecimento e proteção dos espaços quilombolas e comunidades indígenas
O assassinato de Marielle é a expressão mais visível dessa violência brutal, que atinge a área urbana no processo de fortalecimento de uma agenda conservadora e autoritária no país, o que contribui para o sentimento de impunidade de grupos criminosos como as milícias – que atuam a partir da omissão/conivência dos governantes e colocam em xeque o sentido e a eficácia da atuação dos órgãos estatais que atuam na segurança pública e no aparato de justiça.
O mais trágico é o fato do alarmante número de assassinatos de ativistas de direitos humanos no Brasil não impactar o conjunto da sociedade brasileira, gerando uma cobrança pelo fim da impunidade: os números brutais não fazem com que o percentual de crimes esclarecidos aumente. A falta de resultados no caso da morte de Marielle é o comum, não a exceção. O que pensar sobre um crime político que acontece no centro de uma metrópole, exatamente ao lado da Prefeitura do Rio de Janeiro, e a falta de respostas acerca da responsabilização dos culpados, após um ano? O que pensar dos assassinatos que nem chegam ao status de serem investigados? Quais são as garantias de segurança neste pretenso país democrático, no qual se naturaliza uma profusão de violências que recai sobre os seres que mais se dedicam ao bem comum?
Os dados destacados falam muito das perspectivas sombrias que temos no Brasil de hoje. Se, com toda a repercussão e pressão – nacional e internacional – não se prender os assassinos de Marielle, onde eles e seus aliados podem chegar, quais sentimentos irão dominá-los e aos que defendem sua agenda para o nosso país? Nessa perspectiva, não vamos descansar enquanto não conseguirmos justiça. Que Marielle permaneça presente, alimentando cada um/uma de nós, que acreditamos ser a vida possível de um jeito muito diferente do que os que abreviaram sua existência física.