Um cabra arretado

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Uma vida que conta a história e a luta dos moradores do Parque Maré

Maré de Notícias #100

Hélio Euclides

José Gomes Barbosa, mais conhecido como Zé Careca, foi presidente da Associação de Moradores do Parque Maré.

Como muitos moradores da Maré, Zé Careca era nordestino, de Campina Grande. Na adolescência, aprendeu a profissão de torneiro mecânico e atuou numa fábrica, que fechou. Então, veio tentar a vida na Cidade Maravilhosa.

As primeiras palafitas e precários barracos do Parque Maré começaram a ser erguidos no início da década de 1950, a partir dos mangues existentes no final das ruas Flávia Farnese e 17 de fevereiro. Em 1951, Zé Careca se encanta com o balanço da maré e vem morar na favela. Quando chegou, o Beco do Relojoeiro era o endereço de todo mundo para receber cartas.

Com o contato de amigos caminhoneiros, Zé Careca conseguiu aterrar áreas de palafitas. Isso era facilitado pelo fim dos morros na Cidade, gerando muito material para fazer aterros. Dizem que até pó de serra (serragem) foi usado para aterrar. No Parque Maré, teve a sorte de conhecer Dona Nilza. Viveram juntos por 48 anos. Eles trabalhavam muito no bar e no forró da família, onde os nordestinos se reuniam. Em 1978, tiveram uma loja de móveis, na qual vendiam colchão de capim, facilitando, ao máximo, o pagamento. Às vezes, chegava a dar móveis e enxovais. Para a família era Zequinha. Tinha o coração bom. Tinha energia, era um homem de trabalho, um porto seguro.

Um dos momentos marcantes da sua vida aconteceu em 1979, quando o Governo federal queria mandar seu povo para Santa Cruz. Ele lutou contra a desapropriação na Maré e bateu nessa tecla com o Ministro Mario Andreazza, numa reunião no Teatro Nelson Rodrigues. Esse paraibano arretado dobrou o ministro, que acabou não tirando os moradores das proximidades.  Líder comunitário, compôs um grupo que lutou para abrir a Rua Teixeira Ribeiro. Começaram a conversar sobre o assunto entre 1960 e 1961, o passo seguinte foi conseguir trazer o governador Carlos Lacerda no local para dar início à obra. Zé Careca teve um trabalho comunitário forte, em especial na época do Projeto Rio, onde todas as lideranças se uniram. Além de ser diretor da Associação de Moradores do Parque Maré, foi seu presidente de 1998 até 2010.

Zé viveu a história da Maré, na prática. Após sair da associação foi trabalhar no projeto de fisioterapia, que começou em 2004, realizado pela associação, depois pela Prefeitura. Em seguida, com recursos próprios, comprou o espaço onde funcionava o projeto, pois sabia do benefício para os moradores. O projeto foi interrompido há nove anos, mas Zé Careca tinha o último sonho de voltar a esse trabalho. Nos últimos dois anos, Zé Careca sofreu com Alzheimer. Mas foi um guerreiro, nunca se abateu.

(Obituário escrito a partir do depoimento de José Carlos Gomes Barbosa, conhecido como Carlinhos, e Nilza Alves da Silva, respectivamente filho e viúva de Zé Careca).B

Em julho de 2010, Zé Careca deu o seguinte depoimento (ainda inédito) para o Maré de Notícias:

 “Na época das palafitas o povo ficava até acostumado, só era ruim quando bebiam, alguns até de terno branco caiam no mangue. Mas a água potável era difícil, tinha gente que atravessava a Avenida Brasil, que naquele tempo não tinha divisória, com rola-rola e galão. A minha caixa-d’água era um latão de óleo e o vaso sanitário era um buraco. Naquela fase, as pessoas chamavam a todos de compadres e comadres, os barracos podiam ficar abertos. Essa era a vida real da comunidade, assim nasceu a Maré”.

Você sabia? Segundo o Censo Maré 2013, o Parque Maré conta com 13.164 habitantes e 4.552 domicílios.

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