Primeira Infância e espaços seguros

Data:

Maré de Notícias #108 – janeiro de 2020

IRENE RIZZINI E ELIANE GOMES DA SILVA BORGES

Os direitos das crianças são direitos humanos reconhecidos nos marcos do século XX em normativas internacionais e nacionais, incluindo as crianças como sujeitos de direitos desde os primeiros anos de vida. A Convenção Internacional dos Direitos das Crianças de 1989 e, no Brasil, a Constituição Federal de 1988 e a Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA) preconizam os direitos de todas as crianças, sem discriminação, respeitando a diversidade de infâncias. Entretanto, atenção específica voltada às crianças pequenas de fato vem ocorrendo nos últimos anos, dando-se destaque à importância dos primeiros anos de vida (0 a 6 anos), nas pesquisas acadêmicas, nas diversas mídias, nas políticas públicas e no campo dos direitos desta parcela da população. A última década foi importante, com o impulso dado pela Rede Nacional da Primeira Infância (RNPI) e, no ano de 2016, foi promulgada a Lei 13.257 – Marco Legal da Primeira Infância. Essa Lei estabelece princípios e diretrizes para a implementação de políticas públicas voltadas às crianças desde a gestação até os 6 anos de idade, evidenciando os primeiros anos de vida para o desenvolvimento infantil e o desenvolvimento do ser humano.

O Brasil apresenta significativos avanços em relação aos direitos da infância, embora viva-se, no presente, processos de desmonte no que tange aos direitos humanos. Estudos sobre a infância brasileira revelam que há situações de disparidades e violações de direitos das crianças que interferem no seu desenvolvimento pleno e saudável. No caso das crianças na Primeira Infância, circunstâncias desfavoráveis as silenciam e suas demandas e até mesmo sua existência, ficam invisibilizadas. É o caso daquelas que crescem em contextos que as vulnerabilizam, seja em áreas de favela, periferias urbanas ou em zonas rurais. Pesquisas realizadas pela equipe do CIESPI/PUC-Rio vêm apontando a inexistência de espaços seguros, onde possam brincar livremente.[1]

Vejamos, por exemplo, o caso das favelas brasileiras. Nelas, as crianças ocupam as casas, travessas, becos e vielas com suas brincadeiras e vivacidade. Estas localidades, porém, não constam nos mapas oficiais, tampouco nos indicadores estatísticos e orçamentos públicos. As ações a seu favor são descontinuadas, sua priorização é menosprezada e há prejuízos na execução das políticas públicas a elas destinadas. As condições de vida desiguais violam os direitos humanos das crianças que vivem em contextos de favela desde o início da vida. 

Sabemos que as populações faveladas criam estratégias diante dos desafios diários e as crianças vivem, participam e crescem compartilhando essas lutas e resistências. Pesquisas acadêmicas sobre a escuta de crianças vivendo em contextos de favelas ainda são escassas. Uma pesquisa recente sobre o assunto aponta para a relevância de ouvir a criança, como forma de garantir seu direito de ser escutada e de participar, e conclui que as crianças podem oferecer importantes pistas ao nosso aprendizado, compromisso e responsabilidade como adultos diante das infâncias e seus direitos (Borges, 2019).[2]

O Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância em convênio com a PUC-Rio (CIESPI/PUC-Rio), na pesquisa Espaços Seguros para Crianças na Primeira Infância, revela a precária situação das crianças na Primeira Infância, que vivem em contextos de favelas. Dados censitários da pesquisa realizada na Rocinha descrevem locais onde as crianças podem brincar e aprender fora de sua própria casa. Os resultados aplicam-se a outras localidades similares, como a Maré, onde espaços seguros são insuficientes para que as crianças pequenas tenham tranquilidade para brincar. Constatou-se que as instituições locais são espaços cruciais para o suporte e atendimento às crianças em seu cotidiano, porém, grande parte enfrenta sérios problemas de sustentabilidade e manutenção da qualidade dos serviços oferecidos e serve apenas a uma fração das crianças e suas famílias.

As pesquisas resultaram em algumas recomendações: melhorar e multiplicar os espaços institucionais às crianças na Primeira Infância; reduzir a exposição das crianças à violência armada; melhorar a estabilidade financeira das instituições; ordenar o trânsito, criar e manter espaços de lazer, bem como ampliar e aprimorar as ações de apoio às famílias. O Plano Municipal pela Primeira Infância do Rio de Janeiro (PMPI-RJ, 2013), deliberado pelo Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA-Rio), apresenta estratégias para a priorização de políticas, entre elas, aquelas destinadas à promoção de espaços seguros para as crianças.

No âmbito das políticas públicas, é preciso garantir orçamento e espaços de escuta, assim como fortalecer as perspectivas intersetoriais no trato com as causas infantis, a despeito do atual cenário, em tempos de retração de direitos. Isso implica também contar com a mobilização de moradores e sua articulação com a gestão municipal (Segurança Pública, Transportes, Esporte e Lazer, Cultura, Educação, Assistência e Saúde, entre outras). Uma coisa é certa: quanto mais as crianças permanecerem silenciadas e invisíveis, maior a persistência das discriminações e violações de seus direitos.   




[1] Publicações, como os Cadernos de Pesquisa e Políticas Públicas do CIESPI/PUC-Rio, apresentam resultados sobre o assunto (disponíveis em www.ciespi.org.br).

[2] Borges, Eliane G. Escuta de crianças na Primeira Infância em contextos de favela: aproximações e distanciamentos entre saberes e direitos das crianças na Rocinha (Rio de Janeiro). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC-Rio, 2019.

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