Alô, dona de casa! O carro de som chegou!

Data:

Enquanto muitos apostam na internet, os tradicionais carros de som  continuam fazendo sucesso pelas ruas da Maré

Por Thaís Cavalcante em 04/11/2020, às 12h

Basta circular pelas ruas da favela para ouvir um carro de som tocando aquele forró, seguido de um anúncio do show que vai acontecer no final de semana; ou até um enfeitado para passar aquela telemensagem romântica. Quem sabe até o carro do ovo com a promoção de 30 ovos por 10 reais. A tradição dos anos 90 veio para ficar porque funciona. Um trabalho intenso que envolve a circulação do carro por horas a fio com um som preso no veículo. Os pneus aguentam quebra-molas, ruas estreitas, buracos e lombadas altas. Já os moradores, se acostumaram com a rotina de comunicados e comerciais sonoros nas ruas principais. 

Quem também aposta nos carros de som como forma de propaganda eficiente são os candidatos da região e com as eleições chegando, não é difícil encontrar os jingles eleitorais tocando repetidamente pelas ruas, becos e vielas. Muitos escolhem musicalizar os números da candidatura, outros preferem as populares batidas de funk e em paródias. O importante é alcançar o maior número de pessoas e essa missão não é tão difícil com esse mar de gente andando pelas ruas. Com as famosas propagandas volantes, as favelas, o subúrbio e o interior tem a garantia de que sua mensagem está chegando no público certo. Alô, dona de casa!

Para todos os que trabalham anunciando, divertindo e emocionando seus ouvintes, toda a informação divulgada vai ter alguma utilidade. Não à toa, o carro de som é o segundo meio de comunicação mais lembrado pelos consumidores quando o assunto é obter informações sobre ofertas e promoções, de acordo com pesquisa da Federação de Comércios de Bens, Serviços e Turismo (Fecomércio) feita em 2015.

Edvaldo Farias, morador do Parque União, tem 30 anos e quase metade de sua vida foi dedicada às gravações e divulgações de propaganda para carro de som e rádio de poste, no Parque União e Nova Holanda. Ele divide o negócio com seu irmão e seu pai. “Me espelhando no meu pai eu pude aprender essa profissão tão maravilhosa e hoje eu consigo viver de tudo aquilo que ele me ensinou”, diz.

Sobre rotina de trabalho, ele garante que não existe. Ainda que tenham anúncios fixos, outros são rotativos, como propagandas de eventos, igrejas e lojas. Nesta atividade, o que se vende é o tempo de veiculação da propaganda. Além de toda a procura para anunciar no veículo sonoro ou na rádio de poste, quem oferece o serviço também precisa entender a necessidade do cliente, o tempo da propaganda, qualidade e até o volume do som – que pode aproximar, mas também afastar os ouvintes.

Acessibilidade em quatro rodas

A propaganda em carro de som é muito popular também por sua acessibilidade. Na Maré, por exemplo, nem todo mundo sabe ler. Isso equivale a 6% dos moradores, em sua maioria pessoas com mais de 65 anos, que enfrentaram no passado grandes dificuldades de letramento e condições precárias na educação básica. Edvaldo admite essa realidade e se orgulha por sua atuação neste contexto.

 “Infelizmente, nós ainda temos um grande público que não tem facilidade e acesso à internet e que não sabe ler ou escrever direito. A propaganda sonora vem com um formato que facilita a informação. Como o carro de som é auditivo, ele puxa a atenção para ele, o ouvinte pode estar conversando ou trabalhando, mas quando o carro passa as pessoas acabam ouvindo, então ele alcança um público grande”, lembrou Edvaldo. O computador está em 42% das residências mareenses e o acesso à internet apenas em 36%, segundo o Censo da  Maré 2019. Ele acredita que o carro de som, se comparado com a internet, é tão importante quanto, por isso esses meios de comunicação não devem ser considerados inimigos. Afinal, os dois tem o mesmo objetivo: divulgar e fazer a propaganda, mas cada um do seu jeito. “Um nós alcançamos o público pela audição. A internet já alcança visualmente”, avalia.

Quem também aposta nesse meio tradicional é Alexandre Campos, mais conhecido nas festas da favela como DJ Mastter. Ele também atua em outras frentes: seja como produtor musical ou radialista. Ele grava comerciais, anúncios de comércios locais e rádio poste. Conhece bem as ofertas que conquistam e sabe como o resultado de um trabalho impacta na vida dos clientes que contratam os seus serviços. 

Sua carreira começou nos anos 80, quando veio de São Paulo para a Maré. “Eu comecei fazendo festas na casa de um amigo meu, ouvindo discos de soul, rádio AM e FM, programas de charme e funk. Depois comecei a tocar nas festas da Maré e até fora do Rio”, conta ele, que também enxerga potencial e experimenta o trabalho de carro de som fora das favelas.

Comunicando em todos os momentos

Durante a pandemia, todo mundo teve o trabalho impactado. Para os comerciantes que precisaram fechar seus estabelecimentos para diminuir o contágio do coronavírus, por exemplo, a renda diminuiu e a alternativa foi contratar menos anúncios ou até suspender temporariamente os serviços de propaganda volante. Com a reabertura, o mercado de divulgação parece se aquecer, assim como o comércio local da Maré, que segue funcionando normalmente.

Além da utilidade comercial, os carros de som foram importantes meios de comunicação aliados na prevenção da covid-19 na Maré. Os projetos e coletivos atuantes na linha de frente utilizaram, além de faixas, panfletos e comunicados nas redes sociais, os carros de som. Um contato direto com os moradores através de mensagens de alerta e dicas de prevenção, ensinando como lavar as mãos e trazendo a importância de usar a máscara de proteção para evitar a contaminação da doença.

Além dos materiais para mídias sociais e cartazes espalhados por favelas do Rio, a campanha Se liga no Corona! também teve uma ação sonora. Nos carros de som que circularam pela Maré, o cantor Nego do Borel dava algumas recomendações sobre o que é o novo coronavírus e os cuidados de higiene que as pessoas precisam ter ao sair nas ruas. A campanha é resultado de uma articulação entre a Fiocruz, Redes da Maré, Conselho Comunitário de Manguinhos, Conselho Gestor Intersetorial (CGI-Teias Manguinhos), Comissão de Agentes Comunitários de Saúde de Manguinhos (Comacs), Coletivo Favelas Contra o Coronavírus, Jornal Fala Manguinhos! e o Sindicato dos Trabalhadores da Fiocruz, Asfoc-SN.

Confira um dos áudios que circulou em carros de som durante a pandemia, com voz de Karina Donaria, comunicadora e moradora da Maré: http://drive.google.com/file/d/19zxwdXvn52sxfY82dFmQQzNPjaERmfoj/view?usp=sharing

Compartilhar notícia:

Inscreva-se

Mais notícias
Related

Por que a ADPF DAS favelas não pode acabar

A ADPF 635, em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), é um importante instrumento jurídico para garantir os direitos previstos na Constituição e tem como principal objetivo a redução da letalidade policial.

Redução da escala 6×1: um impacto social urgente nas Favelas

O debate sobre a escala 6x1 ganhou força nas redes sociais nas últimas semanas, impulsionado pela apresentação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) pela deputada Erika Hilton (PSOL-SP), que propõe a eliminação desse regime de trabalho.