Como a Educação, Saúde, que são serviços públicos, a Segurança Pública, deve garantir e preservar a vida, segundo o pesquisador Daniel Hirata. Confira na entrevista exclusiva ao Maré de Notícias.
Por Daniele Moura em 07/03/2020 às 12h51
Daniel Hirata, é pesquisador e da Universidade Federal Fluminense, UFF do Departamento de Sociologia e Metodologia de Ciências Sociais e também do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito. Juntamente com a pesquisadora Carolina Christoph Grillo lançou uma pesquisa inédita sobre o número de operações policiais realizadas no estado do Rio de Janeiro, uma estatística que nunca foi produzida pelos órgãos oficiais. O Maré de Notícias conversou com o pesquisador que também teve sua pesquisa citada na 5a edição do Boletim de Segurança Pública e Direito à Vida, da Redes da Maré.
Maré de Notícias – Daniel qual foi sua motivação para começar uma pesquisa desse porte?
Daniel Hirata: A principal razão da gente começar a fazer esse trabalho foi a centralidade das operações policiais como o grande instrumento da ação pública nessa área de Segurança Pública. Elas têm se demonstrado bastante ineficientes para o controle da violência armada. Nós temos diversas pesquisas de cunho mais qualitativo que mostram isso, inclusive, a coleta de dados da Redes da Maré. Eu considero, inclusive, que essa é a melhor coleta de dados incontestavelmente porque conta com uma rede de colaboradores no território. Então tentamos construir essa base sobre operações policiais que trata basicamente da região metropolitana do Rio de Janeiro de 1989 até 2021 – continuamos atualizando essa base até hoje. A ideia é traduzir em números, quantificar dados que até hoje não há dados oficiais sobre isso.
MN: Qual a importância das operações policiais para essa área de Segurança Pública?
DH: É muito clara a questão da proteção patrimonial dessa política de Segurança Pública sendo mais importante do que a vida das pessoas. As operações policiais em territórios periféricos impactam profundamente o cotidiano destes espaços: escolas são fechadas, os atendimentos médicos deixam de acontecer, há um impacto na economia local, há um prejuízo imensurável nessas operações. Infelizmente, elas acontecem cada vez com mais frequência, mesmo que não respondam, efetivamente, ao combate ao crime organizado, ao tráfico de drogas, e ao armamento. Há, da parte da sociedade civil,ainda de alguma forma de desejo, a expectativa de que as operações sejam eficazes, mas não são.
MN: Por que essa política de Segurança Pública ainda é equivocada no sentido de proteger mais o patrimônio do que a vida, já que os resultados revelam isso?
DH: Tem muitas camadas de análise mas o primeiro dado importante, é que em um dos relatórios que nós fizemos sob a demanda da ADPF 635 mostra que o número maior de operações policiais não impacta na diminuição nem dos crimes contra a vida, nem contra o patrimônio. Nos momentos de crises políticas e econômicas no Rio de Janeiro, há um direcionamento do uso da força, e isso se traduz em operações policiais para proteção patrimonial. Se a gente quiser recuar, digamos, historicamente, a gente encontra isso com uma certa recorrência. Na crise que iniciou-se em 2015, nós tivemos, ao mesmo tempo, o aumento nos crimes contra o patrimônio, e o direcionamento da força para as operações policiais, e um grande aumento de roubo de carga, por exemplo. Foi uma panaceia durante um bom tempo no Rio de Janeiro. A questão que se coloca é a que serve a Segurança Pública? Ela deveria ser um serviço público, como Educação, Saúde e como serviço público de garantia da vida, de preservação da vida. Esse é a essência da Segurança Pública, mas acontece que por uma série de razões, que tem a ver com a ligação de grupos políticos e econômicos do Estado, a gente percebe que isso acaba sendo deturpado em prol do interesse de uma minoria, que por exemplo, sofre com os efeitos do roubo de carga. Isso impacta no aumento das mortes e na distribuição dos recursos econômicos e políticos no Brasil, em especial no Rio de Janeiro. E, ainda, faz com que a área da segurança seja direcionada para esses interesses particulares e não como a política universal de garantia e preservação da vida. Do ponto de vista mais específico, falando das operações policiais, é muito importante dizer que esse tipo de operação, mesmo para proteção patrimonial, ela não é muito eficiente. Há dados excelentes sobre ocorrências criminais com uma precisão bastante grande, como: onde, quando e onde acontecem os roubos de veículos e de carga, e se há sazonalidade no ano, por exemplo. Com isso, é possível que a política de Segurança Pública seja guiada por uma objetividade bastante grande, mas não é isso que acontece. Os dados do Instituto de Segurança Pública poderiam ajudar na estratégia das ações, mas acontece que os policiais não atuam seguindo as manchas criminais, eles não atuam segundo os dados, eles atuam fazendo pressão sobre os supostos criminosos, então eles que decidem onde o crime acontece, onde os supostos bandidos moram, e aí que a operação policial acontece, em geral, sem estratégia e nas favelas. Isso, ao invés de atuarem, por exemplo, nos corredores onde sabe-se que acontecem os roubos, os crimes. O que quero dizer com esse pequeno exemplo é que há uma ânsia de fazer operações policiais para, inclusive, realizar essa proteção patrimonial, e isso não está mapeado em dados, em evidências. Um dos grandes problemas que nós temos na área de Segurança Pública é que policiais seguem o que eles chamam de faro policial, que é falho por vezes, causando um impacto de ineficiência por um lado, e de alta letalidade por outro. Na verdade quem paga o pato é a população de favelas e periferias, que historicamente são submetidas a muitas violações de direitos. E, e me parece que o direito que assegura a vida é só mais um direito violado, que não é garantido à essa população. Isso é muito grave, há um genocídio a luz do dia quando você fala da ineficiência das operações policiais.
MN: Como ter uma política eficiente de Segurança Pública? Haveria, ao seu ver, operações policiais?
DH: Poderia haver operações policiais, mas a partir de um trabalho de inteligência, onde esse faro policial pudesse ser mais sofisticado, e claro que, eventualmente, pode haver necessidade de se fazer uma operação policial. O problema é a construção de uma política de Segurança Pública baseada em operações policiais, isso está equivocado. Nas instruções normativas das próprias polícias, as operações constam como ações emergenciais excepcionais, assim como se tornou famosa a partir da decisão do ministro Edson Fachin. Mas, fato, que isso já está nas instruções normativas que regem as operações, tanto da Polícia Civil, como da Polícia Militar. O problema é que as operações viraram rotina, e é por isso que eu estou falando de uma política de segurança que se baseia operações policiais, e o que deveria acontecer é ao contrário: ter uma polícia tecnicamente capaz de investigar, que fosse atrás da raiz dos problemas, e nesse sentido, caso houvesse necessidade, se teria uma operação, claro que dentro dos limites constitucionais do Estado Democrático de Direito. Essa inversão que faz operações policiais se tornarem rotina acaba criando efeitos deletérios com relação à vida, onde a letalidade policial é gigantesca. Há de se pensar numa política de redução de danos até a gente acabar com o racismo e o patriarcado da sociedade brasileira que são estruturantes das nossas desigualdades em suas várias dimensões. Essas ações jurídicas – Ação Civil Pública da Maré e a ADPF das Favelas – são um anteparo que desaceleram a máquina de morte, e isso já é muito importante no quadro na realidade que nós temos, pois já há resultados tangíveis, concretos e objetivos neste sentido. Mas temos que avançar mais, e isso envolve continuar investindo no controle externo e interno das polícias, como a formalização das operações policiais, transparência e prestação de contas, aumento das opções táticas operacionais, que possam fazer com que um policial que tenha errado, volte para o treinamento, e quando for intencional, que seja punido. Eu acho que é importante envolver o Judiciário, que tem, ao meu ver, uma responsabilização dessa cadeia de comando e controle. Não adianta pegar o policial que está ali na ponta que tenha errado, é importante que se puna, que se controle, que se treine. Há também por parte dos juízes que emitem os mandados de busca e apreensão, que desencadeiam operações uma responsabilidade nesta realidade que vivemos. Então, toda essa cadeia que é do policial até o judiciário, ela tem que ser incluída nas formas de objetivação, de controle interno e de controle externo, para que a gente possa avançar, se possível, subindo a hierarquia da cadeia de comando e controle, para que, isto se torne uma cadeia de responsabilização para que possamos ter resultados ainda melhores do que foram cometidos até agora com Ação Civil Pública e com ADPF das Favelas.