Relatório aponta que 83% dos moradores entrevistados ouviram tiros durante a pandemia; 69% presenciaram ou souberam de operações policiais na favela durante este período; a falta de água fez parte da rotina de 37% desta população durante a pandemia; e apenas 26% possuem emprego com carteira assinada
Por Redação, em 27/09/2021 às 9h
Nesta segunda, o coletivo Movimentos – organização de jovens de diferentes favelas do Rio de Janeiro dedicada a construir uma nova política de drogas a partir de uma perspectiva periférica – lança Coronavírus nas favelas: a desigualdade e o racismo sem máscaras, pesquisa inédita sobre os impactos da pandemia da Covid-19 em três grandes favelas da cidade do Rio de Janeiro: Complexo do Alemão, Complexo da Maré e Cidade de Deus.
O estudo realizado pelos membros do coletivo, com apoio do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), demonstra como a população destas favelas tem sido afetada pela pandemia. Para entender melhor este impacto, os pesquisadores elaboraram um questionário fechado com perguntas organizadas por eixos temáticos: 1) Perfil socioeconômico; 2) Covid-19 e acesso à saúde; 3) Impactos da pandemia na saúde mental; 4) Uso de drogas durante a pandemia e 5) Violência.
Com intuito de revelar a realidade das favelas por quem as vive, “a pesquisa mostra que as vítimas da Covid-19 são, majoritariamente, pessoas pretas, pobres e periféricas”, afirma Aristênio Gomes, coordenador do Movimentos e morador do Complexo da Maré.
Atualmente, o agravamento do descaso histórico ordenado pelo Estado é acentuado a partir da postura negacionista do governo federal. Segundo o coletivo Movimentos, as declarações públicas reducionistas do presidente da República em relação à gravidade do vírus, o desestímulo às medidas preventivas, a falta de coordenação da crise e o atraso das vacinas constituem um verdadeiro genocídio nas favelas.
Em 2020, como aponta o relatório, o governo federal deixou de gastar mais de R$ 80 bilhões do orçamento destinado ao combate à pandemia, permitindo, assim, que a situação escalasse para os mais de 200 mil mortos pelo vírus em 2020, com taxas recorde de desemprego (13 milhões de pessoas).
“Além de construir uma potente rede solidária para suprir a ausência do Estado, os jovens das favelas discutem impactos da política de drogas em seu cotidiano, e produzem dados para que a sociedade conheça a realidade que vivemos sob a perspectiva de quem nasce, cresce e mora nesses lugares, que são alvo de várias violências do poder público”, comenta Ricardo Fernandes, coordenador do Movimentos e morador de Cidade de Deus.
Violência
A pesquisa aponta que a política de drogas atual é a justificativa para o Estado invadir cotidiana e violentamente as favelas, violando os direitos humanos, fazendo vítimas e cerceando o direito de ir e vir. Dá-se, assim, a materialização da guerra às drogas.
“Existe, já há muito tempo, um genocídio em curso contra a população favelada no Brasil. Mesmo o Supremo Tribunal Federal (STF) proibindo operações policiais em favela durante a pandemia, vimos o que aconteceu em Jacarezinho: um verdadeiro massacre ao povo preto e pobre”, relata MC Martina, coordenadora do coletivo e moradora do Complexo do Alemão. Nesta colocação, MC Martina lembra da decisão liminar do ministro Edson Fachin, do STF, de junho de 2020, que autorizava a realização de operações policiais em favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia somente em hipóteses absolutamente excepcionais, com justificativas, e comunicação ao Ministério Público do Rio de Janeiro. Tal decisão foi descumprida pelo governo fluminense.
O estudo denuncia o racismo como principal motor dessa guerra, uma vez que a maioria da população moradora das favelas é negra, assim como a maioria dos mortos pelas operações policiais realizadas nestes endereços. O termo genocídio é, novamente, cunhado pelo Movimentos, sendo operado, dessa vez, por um Estado fortemente armado contra uma população desarmada e vulnerável.
Metodologia da pesquisa
A pesquisa foi realizada por integrantes do coletivo Movimentos, entre os meses de setembro e outubro de 2020, usando o método quantitativo de coleta e análise de dados dos moradores das favelas do Complexo do Alemão, do Complexo da Maré e da Cidade de Deus. Vale ressaltar que outras favelas também participaram da pesquisa, mas por se tratarem de localidades dispersas pela cidade do Rio de Janeiro, foram categorizadas como “Outras”.
As questões foram organizadas em 5 eixos temáticos: Perfil socioeconômico; Covid-19 e acesso à saúde; impactos da pandemia na saúde mental; uso de drogas durante a pandemia; violência. Com um total de 55 perguntas, a ferramenta utilizada para coleta de dados foi o Google Forms, disponibilizada por aplicativo para celular.
A proporcionalidade dos questionários por favela usou como base dados divulgados pelo IBGE (2010). Sendo assim, o Complexo da Maré contemplava 129.000 habitantes (totalizando 55,1%, necessitando a aplicação mínima de 275 de 500 questionários), o Complexo do Alemão possuía 69.148 habitantes (29,4%, com aplicação mínima de 148 de 500 questionários), e Cidade de Deus contava 38 mil habitantes (15,5%, aplicação mínima de 100 de 500 questionários). Diante disso, foram aplicados 342 questionários na Cidade de Deus, 305 no Complexo da Maré, 165 no Complexo do Alemão e 143 de outras favelas, totalizando os 955 participantes do estudo apresentado