Por Alexandre dos Santos em 26/10/2021 às 14h45
O Sudão parece um país muito distante, mas entender o que acontece por lá é importante para compreendermos como a democracia é um bem valiosa. O povo sudanês se insurgiu contra um ditador que ficou no poder por quase 30 anos. Pressionaram os militares a tirá-lo do poder, prendê-lo e julgá-lo. Instauraram um governo de transição com metade dos integrantes civis e a outra metade militar. O prazo de validade era até meados de 2023, quando eleições livres deveriam acontecer.
Agora, os mesmos militares que derrubaram o ditador Omar al-Bashir também afastaram o Primeiro Ministro do Sudão, Abdalla Hamdok, quase todo o gabinete dele e vários outros líderes políticos. Foi na calada da noite, na madrugada de domingo para segunda. Antes de o golpe acontecer, o acesso às redes sociais e à internet foram bloqueados. O país ficou isolado digitalmente.
A derrubada do Governo de Transição sudanês me lembrou uma música chamada “Cartomante”, uma composição de Ivan Lins e Vitor Martins que ficou imortalizada na interpretação de Elis Regina. Vale procurar por ela na sua plataforma de áudio preferida e prestar a atenção no refrão, que diz: “Cai o rei de espadas, cai o rei de ouros, Cai o rei de paus, cai, não fica nada!”
O “rei” da vez foi Abdalla Hamdok. Porém, em seis meses, ele foi o terceiro a ser derrubado por militares no continente africano. Em setembro, o presidente da Guiné, Alpha Condé, foi deposto pelo coronel das forças especiais Mamady Doumboya, que assumiu o poder e prometeu novas eleições para o prazo de um ano.
Em maio, outro coronel, Assimi Goïta, promoveu um “golpe dentro do golpe”. Depôs o presidente interino do Mali, Bah Ndaw, e assumiu seu lugar. Nove meses antes, Goïta já tinha deposto outro presidente, Ibrahim Boubacar Keita, que tinha sido reeleito há poucos meses em 2020.
Todos eles prometem preparar eleições e entregar o poder num futuro próximo. Assim, não queimam totalmente o filme com a ONU, a União Europeia, os EUA e a União Africana. E no caso do Mali e da Guiné, evitam problemas maiores com os vizinhos e sanções da Comunidade Econômica dos Países da África Ocidental (Cedeao).
Porém o golpe no Sudão acontece no pior momento possível. Finalmente havia um governo civil no país, liderando reformas importantes e com profundos impactos sociais. Cito duas só pra se ter uma ideia dos avanços: a proibição da mutilação genital feminina (MGF) e o fim da lei que obrigava as mulheres a ter autorização dos maridos para viajar.
As mudanças aconteciam lentamente, diga-se de passagem, mas o país andava para frente depois de quase 30 anos sob a mão pesada do ditador Omar al-Bashir, que está preso. A extradição para o Tribunal Penal Internacional, onde será julgado por crimes de guerra e crimes contra a humanidade, foi anunciada há poucos meses pelo governo que acaba de ser deposto. Agora tudo é incerteza.
As relações entre Abdalla Hamdok com os militares já estavam tensas porque há um mês houve outra tentativa de golpe, liderada por militares fiéis a al-Bashir. Hamdok chegou a dizer que a crise de confiança entre civis e militares era grave e insustentável. Imediatamente, o general Adbel Fattah al-Burhan, o chefe do Conselho Soberano do Sudão, a autoridade Executiva do país, reagiu afirmando que a saída, então, seria dissolver o governo e montar um novo, com uma maior base política dando apoio às escolhas dos dirigentes civis e militares.
O golpe veio resolver esse problema e outro muito caro aos militares. Em três semanas o general Adbel Fattah al-Burhan deveria entregar o poder do Conselho Soberano a um civil. Fazia parte do acordo que garantia a manutenção do Governo de Transição.
Agora o Sudão voltou à estaca zero.
Milhares de pessoas foram às ruas de Cartum para protestar. Como os militares derrubaram as redes sociais e a internet, pouquíssimas imagens chegam ao exterior – especialmente as das repressões contra os manifestantes. Há relatos de manifestantes mortos e feridos a tiros.
A situação do Sudão está longe de ser resolvida. Os militares, que praticamente controlam o governo desde a independência em 1956, continuam dando as cartas. E a região vive um momento de instabilidade grande, com cada país mergulhado em suas próprias questões internas: uma guerra civil no Sudão do Sul, um conflito com rebeldes do norte na Etiópia e o longo conflito entre as milícias islâmicas e o governo da Somália pelo controle do país.
Infelizmente o golpe no Sudão pôs a perder todo o processo de transição, que começou em 2019.
Alexandre dos Santos é jornalista e professor de História do Continente Africano no Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio.