Os assassinatos de pessoas LGBTQIA+ na Maré

Data:

“Eu tenho medo de ser a próxima”, relata ativista trans Larissa dos Santos Soares, secretaria do Centro de Cidadania LGBT da Maré

Por Gabriel Horsth, em 30/11/2021 às 09h50. Editado por Edu Carvalho

As questões sobre o universo LGBTQIA+ vem ganhando força nas esferas sociais, políticas e acadêmicas. Mas a realidade dessa comunidade está longe de ser pacífica no Brasil, como mostra o levantamento realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), secretarias de Atenção Primária em Saúde e de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS) e pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Foram realizadas 24.564 notificações de violências contra pessoas LGBTQIA+ no Brasil entre 2015 e 2017, 22 notificações por dia. Nesse sentido, a cada uma hora no Brasil uma pessoa LGBTQIA+ é violentada. Representantes LGBTQIA+ do conjunto de favelas da Maré debatem sobre como as favelas cariocas, sobretudo o conjunto de favelas da Maré, têm abordado o tema da violência sistemática contra esses corpos.

A ativista transexual dos direitos humanos Gilmara Cunha, de 37 anos, trabalha na defesa e promoção dos direitos civis de pessoas LGBTQIA+ em favelas desde 2006, quando fundou a organização da sociedade civil Grupo Conexão G, a primeira ONG LGBT do Brasil em uma favela. Como resultado da luta de mais de 15 anos, foi inaugurado em setembro de 2021 o primeiro centro de cidadania LGBT em uma favela, o Centro de Cidadania LGBTQUIA+ (CCLGBT) Gilmara Cunha – Capital III, na favela Nova Holanda, uma das favelas da Maré. “O espaço nasce como mais um braço do Conexão G, e também serve como centro de informação, acolhimento e mobilização territorial, promovendo políticas públicas de combate à LGBTQIA+fobia”, comenta a ativista. 

Com mais de 200 atendimentos realizados até o momento, no dia 20 de outubro, antes mesmo de completar um mês desde a inauguração, o CCLGBT recebeu uma denúncia, um jovem negro e gay fora encontrado assassinado à facadas em sua residência na Maré. O corpo de Luis Binho foi exposto a uma série de violações de direitos, como por exemplo, acesso a uma perícia. “A organização criminosa local só aceita a entrada de perícia em casos excepcionais, e esse não é visto como um por eles”, conta Gilmara após analisar que as organizações criminosas possuem religião, em suma maioria cristãs de igrejas neopentecostais. As organizações criminosas que atuam na Maré e em outras favelas cariocas têm opinião pública claramente LGBTQIA+fóbica. Ela denuncia que o corpo do jovem foi retirado por moradores a mando da facção local e jogado às margens da Av. Brasil para, em seguida, ser encaminhado para o Instituto Médico Legal (IML), localizado no centro do Rio. “No trajeto, o corpo foi derrubado três vezes e a cena do crime totalmente alterada”, relata a ativista. A pesquisa realizada pela Fiocruz mostra que mais da metade das agressões e crimes são cometidos contra pessoas negras. “Como a família desse jovem se sente diante de tantas violações?”, lamenta Gilmara, que se mostra revoltada diante de tantos absurdos cometidos com a população LGBTQIA+ nas favelas do Brasil.

Larissa dos Santos Soares, de 38 anos, é moradora da Maré e conta que saiu da prostituição após o CCLGBT contratá-la como secretária, mas o fato não a fez esquecer dos momentos de dor que viveu como garota de programa. “Ninguém enxerga a gente como ser humano, travestis são vistas como qualquer coisa”, diz ela que relembra nomes de amigas que foram assassinadas, “Vanessa, Rata, Fabíola e muitas outras que foram mortas pelo tráfico e pela ignorância das pessoas”. Ela fala com tristeza de outra travesti morta recentemente em uma favela de Campo Grande, bairro da Zona Oeste do Rio, e comenta: “Eu tenho medo de ser a próxima”.

Homofobia é crime no Brasil. Em 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF0 decidiu que declarações homofóbicas podem ser enquadradas no crime de racismo também; pena é de 1 a 3 anos, podendo chegar a cinco em casos mais graves. A determinação, atrelada à Lei de Racismo (7716/89), prevê crimes de discriminação ou preconceito por “raça, cor, etnia, religião” e contempla atos de “discriminação por orientação sexual e identidade de gênero”. Ainda assim, o país é campeão em assassinatos da população LGBTQIA+, sendo as pessoas trans e travestis as maiores vítimas, como mostra o dossiê dos assassinatos e da violência contra pessoas trans lançado pela Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (ANTRA) em janeiro de 2021.

Hebert Silva dos Santos (30), mestrando em Psicologia Social no PPGPS-UERJ e psicólogo do CCLGBT, comenta sobre a realidade da juventude local, “A necropolítica opera desde as limitações de saúde, educação, segurança pública, transporte, lazer e entre outros. Toda essa falta de políticas públicas, deixam essa parcela da população à mercê de si mesma e do que opera dentro dela em termos de construção social“. Para o psicólogo os assassinos não temem por justiça, pois a máquina pública não investiga os casos, “A impunidade dessas mortes reinam“. Ele conta que a saúde mental da população LGBTQIA+ segue num dos momentos de maior fragilidade. O contexto pandêmico gerou uma perda significativa de auto sustento dessa população, e pessoas LGBTQIA+ acabaram voltando para ambientes familiares, onde o preconceito tem uma presença forte na construção cotidiana das relações. “A grande maioria que recebemos no CCLGBT, chega sendo vítima de violência familiar ou em espaços públicos. Pessoas que chegam com alto nivel de ansiedade, depressao, panico e alguns casos de tentativa de suicídio”.

Nlaisa Luciano Gaspar Mesquita (25), artista e professora do pré-vestibular do CEAMS da Maré, conta que os dados sobre assassinatos LGBTQIA+ não são amplamente divulgados, nem discutidos nos espaços cotidianos e de poder da sociedade, “O Estado negligencia a violência contra pessoas como nós o tempo todo”, diz ela. Como artista ela não enxerga saídas concretas na estrutura governamental do país para os problemas psíquicos enfrentados por pessoas trans na sociedade. “A morte está presente no cotidiano de pessoas LGBTQIA+”, diz ela ao analisar que a comunidade tem garantido algumas políticas públicas voltadas para criminalização de atos LGBTQIA+fóbicos, mas que a garantia da integridade física dessas pessoas está atrelada a uma campanha de conscientização nacional sobre aspectos da sexualidade e gênero. “Nos livros didáticos a questão da biologia é tratada de forma higienizada e transfóbica, já na escola o debate sobre o entendimento da nossa identidade está distante, e quando presente se torna um tabu que se ramifica através dos estigmas”, aponta ela ao mesmo tempo que relaciona os assassinatos a questão racial. Nlaisa reflete sobre a consolidação do país como nação federativa a partir de mortes, violências, estupros, miscigenação e escravização. A artista afirma que não há como pensar qualquer questão política no país sem levar em consideração a raça como fator predominante na consolidação das mazelas sociais.

O Grupo Conexão G vem realizando um dossiê sobre os assassinatos de pessoas LGBTQIA+ em favelas, a ação visa dar visibilidade aos crimes cometidos dentro de espaços marginalizados e ocupados por organizações criminosas. Gilmara relata que parte significativa dos assassinatos em favelas não são registrados como crime de homofobia, dificultando a coleta dos dados e consequentemente o avanço das políticas públicas nessas áreas. A construção de um futuro de plenitude para pessoas LGBTQIA+, negras e faveladas parece estar distante. Contudo, as articulações que instituições e ativistas têm feito para minimizar essa realidade cruel, continua sendo o combustível para um futuro mais justo, menos violento e diverso.

Compartilhar notícia:

Inscreva-se

Mais notícias
Related

Por que a ADPF DAS favelas não pode acabar

A ADPF 635, em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), é um importante instrumento jurídico para garantir os direitos previstos na Constituição e tem como principal objetivo a redução da letalidade policial.

Redução da escala 6×1: um impacto social urgente nas Favelas

O debate sobre a escala 6x1 ganhou força nas redes sociais nas últimas semanas, impulsionado pela apresentação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) pela deputada Erika Hilton (PSOL-SP), que propõe a eliminação desse regime de trabalho.