Quem tem medo das pessoas T na escola?

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Saiba mais sobre as trajetórias repletas de barreiras extras de pessoas trans e travestis na educação pública no Brasil, cujos índices índices gerais de abandono escolar são preocupantes

Por Vitor Félix, em 30/06/2022 às 07h.

Maré de Notícias Impresso – Edição #137

A permanência e continuidade dos estudos para pessoas LGBTQIA+ no país é dificultada por inúmeros fatores, muitos deles ancorados no preconceito e nos problemas de aceitação durante a convivência social com alunos e alunas desses grupos. Homens e mulheres trans e travestis, além de outras pessoas dentro da comunidade LGBTQIA+, desde a infância têm sua presença restringida no ambiente escolar e, ao longo da trajetória escolar entre as séries, abandonam os estudos para não mais retornarem aos bancos escolares, como mostra um estudo de 2019 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mas, desse dado surge o questionamento: quem tem medo de pessoas T na escola?

Não é fácil responder à questão, mas é perceptível que o medo de algum tipo de violência é sentido constantemente por pessoas transexuais e travestis no ambiente acadêmico, como consta no relatório de 2016 da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (ABGLT). Segundo esse levantamento, mais de 54% de estudantes transexuais escutam de outros estudantes, com frequência, comentários ofensivos que questionam sua identidade de homem ou mulher trans, além de ridicularizarem seus estilos de vida, comportamentos e modos de ser.

O relatório registra ainda que apenas 16% dos professores interferem nos ataques verbais dos estudantes, enquanto mais de 53% dos profissionais da educação nunca reagem às ofensas que alguns estudantes dirigem aos alunos e alunas trans/travestis. Muitas vezes, é a própria solidariedade de outros alunos na defesa contra o assédio e o preconceito sexual e de gênero que ajudam a amenizar a trajetória das pessoas trans ao longo da vida escolar.

Abandono escolar em dados gerais

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB) data de 1996 e, em seus primeiros artigos, é defendida a universalidade da educação no território nacional. Porém, a realidade nos mostra que o cumprimento dos artigos da LDB está distante de se tornar realidade. O índice de 11 milhões de analfabetos no país é uma das marcas na falha da garantia de oferta ampla do direito básico à educação, como revela um estudo de 2019 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Segundo a pesquisa, 51,1% dos homens e mulheres adultos maiores de 25 anos (incluindo pessoas analfabetas) nunca concluíram o ensino médio, muitos nunca retornarão para uma sala de aula, abrindo margem para outros problemas sociais. O estudo divulgou pela primeira vez dados sobre abandono escolar. Das 50 milhões de pessoas de 14 a 29 anos do país, 20,2% (ou 10,1 milhões) não completaram alguma das etapas da educação básica, seja por terem abandonado a escola, seja por nunca a terem frequentado. Desse total, 71,7% eram pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas.

Os resultados mostraram ainda que a passagem do ensino fundamental para o médio acentua o abandono escolar, uma vez que aos 15 anos o percentual de jovens quase dobra em relação à faixa etária anterior, passando de 8,1%, aos 14 anos, para 14,1%, aos 15 anos. Os maiores percentuais, porém, se deram a partir dos 16 anos, chegando a 18% aos 19 anos ou mais.

Segundo o IBGE, o principal motivo declarado para o abandono da educação formal pelos jovens do país foi a necessidade de trabalhar, apontada por 39,1%, seguido pelo não interesse (29,2%). Em relação às pessoas que se identificam com o gênero masculino, 50% disseram precisar trabalhar e 33% relataram não ter interesse. No caso das mulheres, o principal motivo foi não ter interesse em estudar (24,1%), seguido de gravidez e trabalho (ambos com 23,8%). Além disso, 11,5% das mulheres elegeram realizar os afazeres domésticos como principal motivo de terem abandonado ou nunca frequentado escola, enquanto para homens este percentual foi inexpressivo (0,7%).

Discriminação que limita

Localmente, a dificuldade no convívio social de estudantes trans/travestis com outros alunos é apenas mais um fator que impacta a vida escolar dessas pessoas. Na Maré, historicamente há poucas escolas que oferecem o ensino médio, reduzindo ainda mais as possibilidades de escolha e transferência de uma escola para outra, nos casos de perseguições e assédio. De acordo com o Censo Maré (2019), há 44 escolas no conjunto de favelas da Maré; no entanto, cinco escolas oferecem do 6º ao 9º ano do ensino fundamental e somente três ofertam o ensino médio, sendo duas apenas aulas noturnas.

Os ataques diários, que impactam tanto o físico quanto o psicológico do estudante LGBTQIA+, se somam à falta de aulas em dias de confronto armado e mais a necessidade de ajudar na renda familiar, resultando no aumento do abandono dos estudos por parte de muitas pessoas T.

Ludmylla de Souza, 28 anos, é uma mulher trans que decidiu retomar seus estudos em 2021. Prestes a concluir o ensino médio, ela conta como foi abandonar a escola e, dez anos depois, retornar à sala de aula. Parei com 16 anos porque comecei a trabalhar e não conseguia conciliar o emprego com a escola. Ficou muito difícil e cansativo, por isso desisti de estudar. As firmas pedem o certificado do ensino médio completo e, por isso, fiquei impedida de trabalhar onde é obrigatório esse diploma”, relata.

Além de ficarem para trás na conclusão do ciclo básico de educação, pessoas trans ainda enfrentam o preconceito de muitas empresas, que recusam currículos e não dão oportunidades de empregos formais para essa população. Diante do pouco nível de formação escolar, o cenário piora ainda mais.

A solução para esse problema passa pela transformação do ambiente escolar. Ludmylla é aluna da Escola Fundação Roberto Marinho, que, em parceria com a Redes da Maré, oferece ensino para jovens e adultos (EJA) e já formou mais de 400 estudantes mareenses nos últimos anos no ensino fundamental e médio. A estudante conta, ainda, que deseja fazer faculdade de gastronomia nos próximos anos para realizar seu sonho de se tornar uma cozinheira diplomada.

Do outro lado da sala de aula encontramos profissionais como Aline Araújo, de 33 anos, professora da turma na qual estuda Ludmylla, que é sua primeira aluna trans. Aline representa outra perspectiva possível para estudantes trans: uma caminhada com acolhimento e tratamento respeitoso no ambiente escolar. 

Integrantes da turma de Ensino de Jovens e Adultos, projeto desenvolvido pela Redes da Maré em parceria com Fundação Roberto Marinho. Foto: Matheus Affonso

“No primeiro dia de aula, ela se apresentou como uma mulher trans. Minha ação imediata foi observar os outros alunos e identificar algum olhar preconceituoso sobre ela. Mas não houve. Alguns já a conheciam e quem não sabia quem Ludmylla era a tratou com afeto e cuidado, inclusive no uso correto do pronome ao se referir a ela”, contou a professora.

Para Aline, é importante aumentar a inclusão para que a convivência com pessoas trans seja vista, cada vez mais, como um processo natural nos mais diversos ambientes sociais. “Acredito que deva ser difícil pra ela estar em um local onde ninguém mais vive essa realidade. Seria ainda mais acolhedor se outras pessoas trans pudessem estar na sala, e importante para ela e para tantas outras pessoas que desistiram da escola por inúmeros motivos. Outro fator que provoca esse abandono, além da não aceitação de alguns, é a falta de acolhimento de alguns atores da escola, principalmente no corpo docente”, explica.

A professora acredita que a falta de políticas públicas no campo da educação resulta na ausência de pessoas trans/travestis nas instituições de ensino do país. “Minha aluna tanto ensina sobre respeito, empatia e afeto só de estar sentada ali, naquela cadeira, como também ocupa um lugar que, por direito, também é dela”, acredita. 

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