O clima mudou. E agora?

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Calorão e enchentes que marcam o dia a dia das favelas podem ter efeitos irreversíveis caso não sejam enfrentados por governos

Por Edilana Damasceno

Quando a chuva cai com intensidade, Daniela de Morais, 36 anos, já sabe que não há muito que possa fazer. Há 20 anos moradora da favela Rubens Vaz, ela já entendeu que o esforço da família para conter a força da água nem sempre é suficiente para impedir os estragos provocados pelas enchentes. Em meses de chuvas fortes, bastam poucos minutos para que o valão transborde e danifique as paredes, os móveis e demais pertences, fazendo do lar tão cuidado por todos um cenário de devastação, tristeza e indignação. “É algo que não desejo pra ninguém”, afirma.

O problema é histórico, mas a sensação de Daniela e de outros moradores da Maré é de que ele tem aumentado com o passar dos anos. A professora de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro Carolina Galeazzi garante que não é apenas uma impressão. As mudanças climáticas têm piorado o cenário, culminando na chamada emergência climática. 

A especialista explica que o meio ambiente sofre graves consequências da ação humana desde a industrialização, quando as fábricas passaram a emitir gases poluentes que provocam o aquecimento do planeta: “Isso levou a um desequilíbrio na vegetação e nos oceanos, gerando um aumento no nível do mar e, consequentemente, chuvas mais frequentes.” 

Segundo um levantamento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), mais de 925 mil pessoas vivem em áreas de risco de enchentes ou deslizamentos no Rio de Janeiro. Tais fenômenos estão diretamente ligados à falta de saneamento básico ou coleta irregular de lixo, problemas recorrentes no dia a dia dos fluminenses. 

Em 2019, menos de 40% do esgoto gerado no estado do Rio era tratado, como indicam dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS). O resultado disso é que os canais não conseguem dar vazão aos dejetos da população, o que prejudica o fluxo das águas da chuva até a Baía de Guanabara, por exemplo. O lixo descartado de forma indevida ou não coletado pela Comlurb deixa o cenário ainda pior, obstruindo os canais e entupindo bueiros e bocas de lobos.

Na Maré, 80% das mais de 200 queixas dos moradores sobre saneamento básico se referem a esgoto e lixo, de acordo com o relatório Cocôzap: Sistematizando dados e formulando políticas, publicado em agosto deste ano pelo data_labe em parceria com a Fundação Heinrich Böll. 

São histórias de pessoas como Daniela, que já nem sabe mais de cabeça o tamanho do prejuízo financeiro causado pelas enchentes. “Como moro na parte baixa, já perdi muitas coisas, como roupas de cama, panelas, calçados e brinquedos da minha filha, além de alimentos, que ficam embaixo da pia”, conta. Com o agravamento da crise climática, Daniela, o marido e o casal de filhos sonham com a possibilidade de viver em uma casa mais no alto. 

Movimento Está rolando um Clima reflete sobre relação entre mudança climática e periferias – Foto: Gabi Lino

Cada vez mais calor

Além dos alagamentos, a crise climática pode provocar outros problemas: um deles é o aumento do calor. De acordo com o serviço de monitoramento do clima da União Europeia, os últimos sete anos foram os mais quentes já registrados em todo o planeta. 

Carolina Galeazzi destaca que os efeitos desse “calorão” são mais sentidos por quem vive em áreas urbanas. “Esse meio não está preparado para oferecer sombra, uma praça, um parque externo, onde seja possível se refrescar ou descansar no meio de um percurso, evitando que o morador sofra de insolação, alteração na pressão etc”, diz a especialista.

Além dos prejuízos à saúde física, o excesso de calor também impacta a vida financeira do cidadão e aumenta o consumo de energia elétrica. “A gente vai querer ligar mais o ar condicionado; aumentando a demanda por mais energia. Não temos como saber se a produção energética será suficiente, então talvez precisemos construir mais hidrelétricas”, exemplifica a doutoranda em Urbanismo. 

Outro ponto importante para entender a mudança do clima nas cidades são as ilhas de calor, fenômeno identificado em áreas urbanas e que demonstra como a temperatura nesses espaços pode ser discrepante em relação a áreas rurais. 

Ao pesquisar a ocorrência de ilhas de calor na Maré, Carolina mediu o nível de calor em diferentes pontos do conjunto de favelas e notou, por exemplo, como a temperatura se mostra mais alta em ruas mais estreitas. A Nova Holanda apresentou, em alguns momentos, mais calor do que a área da Baixa do Sapateiro, que conta com maior vegetação e espaços abertos para ventilação. 

A pesquisadora ressalta que as diferenças têm a ver com os motivos que levam determinado território a propagar ou dispersar o calor. “Não é por serem favelas, e sim pelas condições às quais as favelas são submetidas atualmente.”

Leblon sem lixo

As escolhas de quais lugares serão mais assistidos e quais serão preteridos são políticas. É o que afirma Maureen Santos, professora de Relações Públicas da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio): “Não são só mudanças climáticas, é um modelo de desenvolvimento que vem sendo empregado no país e apoiado pelos governos.” 

Ela relembra que, em 2015, a cidade do Rio de Janeiro sediou o encontro do C4, grupo formado pelas maiores metrópoles do mundo com o objetivo de defender a pauta climática. O evento resultou em avanços no setor até retroceder na gestão do prefeito Marcelo Crivella e estagnar no atual governo de Eduardo Paes. 

Para a especialista, investir na infraestrutura é fundamental para reverter o quadro histórico de problemas climáticos no Rio, cuja geografia já colabora para um impacto maior das chuvas. Como estratégia de enfrentamento, Maureen cita a organização da própria população para priorizar e discutir o tema, seja votando em quem tem propostas ou cobrando quem está no poder e pode decidir em que melhorias investir.

Este ano, o Egito vai sediar um dos maiores eventos para a resolução da emergência climática: a Conferência das Partes (COP), patrocinada pela Organização das Nações Unidas (ONU), acontece entre 6 e 18 de novembro. Esta 27ª edição vai reunir os países que se comprometeram a controlar a emissão de gases de efeito estufa e a conter o aumento da temperatura do planeta. 

Segundo Maureen, o primeiro passo para a mudança é a conscientização, sobretudo acerca do papel de cada um nessa luta. “É importante não culpabilizar, pelo estado em que a favela se encontra, o morador por supostamente jogar lixo no rio ou deixar as sacolas na porta de casa. É o governo quem precisa garantir uma coleta de lixo eficiente na favela. Por que a coleta é regular no Leblon e não na Maré?”, questiona. 

Em meio a decisões políticas que geralmente não priorizam as favelas, as especialistas são unânimes em afirmar que somente com investimento em saneamento básico a Maré poderá enfrentar essa emergência climática.

Edição: Elena Wesley

Valão da Rua João Araújo é um dos pontos de preocupação no que diz respeito a alagamentos – Acervo Cocôzap

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