Entre 2017 e 2021, o país teve 781 assassinatos de pessoas trans brasileiras e o Rio de Janeiro aparece na quinta posição, com 59 mortes
Por Júlia Bruce
“Pelo fato de eu ser a única trans, aquilo me gerava um certo desconforto, uma insegurança por estar no meio de tantas mulheres cis, mas eu fui acolhida de uma forma que todas essas sensações viraram determinação e vontade de querer ser mais do que eu era”, conta Laila Kelly, 25, moradora da Nova Holanda e instrutora do curso Maré de Belezas LBT, da Casa das Mulheres da Maré, há quatro meses. Com a parceria de mobilização do Grupo Conexão G de Cidadania LGBT, a Casa Resistências e o Instituto Trans Maré, a iniciativa é voltada para a comunidade lésbica, bissexual e transexual e forma mulheres em auxiliar de cabeleireiro. Mais de 30 mulheres somente neste mês de janeiro se formaram e a maioria já tem seu próprio negócio. A primeira turma foi em outubro de 2022.
A data de 29 de janeiro é marcada pelo Dia Nacional da Visibilidade Trans e de Travestis e chama a atenção para a situação de vulnerabilidade e de risco em que esse grupo vive diariamente, sobretudo em um território de favela. A instrutora do curso de Manicure da Casa das Mulheres da Maré, Dafiny Nascimento, 33, moradora da favela Roquete Pinto, reforça que “todas nós, mulheres trans, temos capacidade para estar passando nossos conhecimentos e ajudando quem um pouco necessita”. Em contrapartida, ao ser perguntada do que ela sente ausência nesse meio para o público trans, ela comenta: “no momento não sinto muito ausência de nada, porque os desafios são a violência que ainda existe na favela, infelizmente. O mercado está melhorando aos poucos e incluindo pessoas trans no meio de outras pessoas, mas ainda há muito preconceito maquiado”.
Dados da pesquisa anual “Dossiê: Assassinatos e Violências contra as travestis e transexuais brasileiras em 2021”, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) de Salvador, mostra que o Rio de Janeiro é o terceiro estado com mais assassinato de pessoas trans desde 2017, subindo para 12 o número de casos em 2021. Entre 2017 e 2021, o país teve 781 assassinatos de pessoas trans brasileiras e o Rio de Janeiro aparece na quinta posição, com 59 mortes.
Sobre as ações em parceria do Conexão G com a Casa das Mulheres da Maré
O Grupo Conexão G é uma instituição voltada para a sociedade civil com o propósito de questionar e refletir sobre os elementos sociais que denunciam a ausência de políticas públicas para levar cidadania à população LGBT do território. Criada em março de 2006, foi formada em um grupo de jovens de favelas do Rio de Janeiro que resolveram realizar ações de reflexões sobre a homossexualidade nesses territórios com o foco na temática dos Direitos Humanos e a Promoção da Saúde da população LGBT+. Além disso, o desafio diário também é dar visibilidade aos crimes de transfobia cometidos na Maré e em outras favelas do Rio de Janeiro em parceria com instituições de pesquisas. A organização LGBT é a primeira do Brasil consolidada em uma favela.
Desde 2021, a Casa das Mulheres da Maré e o Conexão G passaram a desenvolver projetos juntos e a parceria de mobilizações para o Maré de Belezas LBT começou logo ao término da primeira turma do curso de confeitaria. “Foi uma parceria do projeto Cozinha Trans e o Maré de Sabores, a Mariana Aleixo [coordenadora da Casa] nos apresentou o projeto e trouxe a vontade do Grupo Conexão G fazer parte com as mobilizações. Foi através do Grupo Conexão G que houve um aumento da comunidade trans no equipamento da Redes da Maré”, explica a coordenadora de projetos e articuladora de territórios Larissa Soares, 39, e moradora da Nova Holanda.
Em 2022, foi aberta a primeira turma do Maré de Belezas LBT e o apoio se manteve mais forte. “Foi através do Conexão G que algumas meninas trans nos procuram para fazer o curso. A diretora da ONG é uma mulher trans [Gilmara Cunha] e isso acaba incentivando outras meninas trans”, explica Laila Kelly sobre como se dá essa mobilização.
Ainda no primeiro ano de pandemia, por meio de reuniões on-line, Gilmara, Larissa e Mariana já estavam iniciando uma articulação para o início das aulas presenciais, pensando em datas concretas já que tinha se iniciado o processo de imunização através das vacinas contra a covid-19. A Casa das Mulheres cedeu o espaço e os equipamentos para serem utilizados no curso de confeitaria do Cozinha Trans.
“Tudo isso só foi possível porque já existia o projeto Maré de Sabores que oferece cursos de gastronomia para mulheres cis da Maré. Foi importante porque trabalhamos com a inclusão de mulheres transexuais, já que a Casa é voltada para mulheres, mas é importante a inclusão de mulheres trans e travestis circularem por esse espaço. E, com todo esse processo, já foram realizadas duas turmas do curso de confeitaria e pretendemos seguir o mesmo ritmo da turma anterior”, conta Larissa.
Realizações profissionais
O acompanhamento das mudanças nas vidas profissionais das ex-alunas também é feito por essa parceria. Muitas das mulheres trans não tinham consciência sobre esses espaços que servem de apoio para tantas mulheres, inclusive trans e travestis. São feitos acompanhamentos via aplicativo de conversa das duas últimas turmas formadas e muitas mulheres já estão trabalhando na área da confeitaria. “Até hoje faço bolos e os recheios que aprendi no curso na Casa das Mulheres”, diz Nathaly Ferreira, moradora da Nova Holanda e ex-aluna do Cozinha Trans.
Em maio deste ano, Fernanda Telles, 38, completa um ano como coordenadora de projetos do Conexão G, onde atua gerenciando uma turma de mulheres e homens trans em que são abordados temas como preconceito, discriminação, direitos humanos, entre outras abordagens atigem esse grupo de pessoas. Ela foi aluna do Cozinha Trans e antes trabalhava em cozinhas como ajudante, copeira e cozinheira. “A minha trajetória foi a melhor possível, aprendi e me reeduquei diante de uma cozinha profissional, tive uma ótima experiência e achei evolutivo para a população LGBT”, conta a moradora do Morro do Timbau.
A luta das mulheres trans na Maré e o caminho de fortalecimento
Desde a década de 1980, a partir da epidemia de Aids, ações governamentais concretas em prol do público LGBT+ começaram a ser realizadas e os movimentos da comunidade passaram a ser mais reconhecidos. Organizações da sociedade civil também foram criadas como estratégias de amparo social para a proteção do público, principalmente em favelas. Mais recentemente, em 2021, o Programa Estadual Rio Sem LGBTFobia promoveu a criação da Casa da Diversidade Gilmara Cunha, na Nova Holanda – o primeiro Centro de Promoção da Cidadania LGBTIQIA+ instalado em uma favela. O espaço oferece serviços de apoio à população LGBT+ para garantir e promover cidadania e acesso aos seus direitos.
A atual coordenadora do projeto Maré de Sabores, Michele Granda, e aluna da primeira turma há 12 anos, viu sua irmã perder a luta pela Aids naquela época e a sua luta pelo reconhecimento do que é ser mulher como um todo na favela – trans, travesti, lésbica – foi fortalecida. “Minha irmã, Luciana Bombom, sofria inúmeras violências, desde a vulnerabilidade por não ter emprego e pelo olhar pesado da sociedade que naquele tempo era muito maior, pois não se falava muito e não havia muitas oportunidades. Ela tinha o sonho de formar uma família, mas não foi concretizado. Minha irmã veio a óbito por falta de profissionalização, por falta de amparo social”, relembra Michele. A coordenadora sempre participava das formações sobre Gênero e Sociedade (desde 2011) e incentivou a abertura de atividades da Casa para o público trans: “se somos uma casa de mulheres, precisamos abraçar a mulher na sua totalidade”. Em uma das aulas, Michele encontrou duas amigas que cresceram com sua irmã.
A parceria, por exemplo, da Casa das Mulheres da Maré em parceria com organizações locais de apoio contribui para que essa discussão da mulher trans seja mais consistente dentro do local. “Muitas lutas e conquistas do território da Maré foram e ainda são lideradas por mulheres trans e queremos dar visibilidade à diversidade delas, pois a sua liderança é fundamental. A mobilização, tanto com o Instituto Trans Maré e o Conexão G, reconhece essas instituições junto à Casa e possibilita que essas mulheres possam acessar todos os cursos e outros serviços que o equipamento presta. Então, elas se reconhecem nesse lugar e conseguimos que elas o reconheçam como um espaço para ocupar, demandar, pautar e ser agentes de construção desse espaço”, explica a coordenadora da Casa das Mulheres, Mariana Aleixo.
Em memória: a biblioteca da Casa também recebe o nome de Cristiane Cristina para homenagear a mulher trans que trabalhou e foi agente de construção desse espaço. Ela faleceu no ano passado em um atropelamento na Avenida Brasil.