Assédio sexual virtual: como proteger crianças e adolescentes?

Data:

Dados apontam que crime de estupro virtual é crescente no país

Por Beatriz Amat(*) e Júlia Motta(*)

A adolescente Karina realiza um sonho muito comum de meninas da sua idade: conversar com uma atriz que é fã. A amizade entre as duas cresce e elas se ligam frequentemente por chamadas de vídeo. Mas tudo muda quando a artista começa a fazer pedidos estranhos. Ela pede que Karina mande fotos seminuas, insistindo ser para participar de um teste de novela. A adolescente envia as imagens — sem saber quem realmente estava do outro lado da tela. 

Em Travessia, novela das 21h da Globo que acabou no último sábado (07/5), os telespectadores se chocaram com a história de Karina, vítima de um pedófilo que se passava por uma jovem atriz, convencendo a adolescente a enviar fotos íntimas. Após revelar sua verdadeira aparência, de um homem adulto, o agressor passa a chantagear a menina pedindo mais vídeos e fotos dela seminua.

A situação da novela alertou pais, responsáveis, crianças e adolescentes para casos de abuso sexual virtual. Cerca de 366 crimes cibernéticos são denunciados todos os dias no Brasil, e a maioria das vítimas são crianças e adolescentes, segundo a ONG SaferNet, num estudo em parceria com o Ministério Público Federal (MPF). 

Um estudo realizado pelo Inhope, em 2022, aponta que a maioria das vítimas encontradas em materiais de abuso sexual infantil online são meninas, de 3 a 10 anos.

A SaferNet também afirma que, entre 2021 e 2022, houve um crescimento de quase 10% dos casos de abuso e exploração sexual infantil na Internet no país.

Um caso parecido com o da trama aconteceu em setembro de 2022, em Itagi, interior da Bahia, em que um pedófilo fingia ser uma criança para conseguir fotos e vídeos pornográficos de vítimas do Distrito Federal. Com o material em mãos, ele as ameaçava em troca de mais gravações. 

Casos como esses, e outros, como o da adolescente de 12 anos, do Rio de Janeiro, sequestrada e mantida em cárcere privado por oito dias no Maranhão, por um pedófilo que mantinha contato com ela pelo TikTok, criam alertas para a segurança de crianças e adolescentes na internet e o perigo das novas tecnologias, como o deepfake. 

Estupro virtual

Esses casos de abuso sexual na internet podem ser considerados crimes de estupro virtual. É o que explica Eva Cristina Dengler, da ONG Childhood Brasil:

“A lei brasileira não cita especificamente o crime de estupro virtual, mas casos como esse estão sendo tratados pelo Artigo 213 do Código Penal”. 

Eva Cristina Dengler, da ONG Childhood Brasil.

A condenação é possível devido a uma mudança na lei feita em 2019, que passou a considerar o crime de estupro como a conduta de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Ou seja, não é mais preciso haver contato físico entre o agressor e a vítima para configurar o crime. “Essa nova redação abre ‘brecha’ para caracterizar o estupro virtual”, explica Eva.

 Atualmente, um projeto de lei para tipificar o crime corre no Senado. O PL do deputado federal Lucas Redecker (PSDB) criminaliza “assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, menor de 14 (catorze) anos a se exibir de forma pornográfica ou sexualmente explícita”. 

Eva afirma que é fundamental tipificar o crime de estupro virtual para trazer segurança jurídica às vítimas e que é importante que denunciem também.

“A internet é um território infinito. Só conseguimos saber o que está acontecendo e tomar medidas quando identificamos os crimes. E muitos deles só são possíveis graças às denúncias”. 

Eva Cristina Dengler, da ONG Childhood Brasil:

A pena do crime depende da extensão dos danos e do contexto da violação. De acordo com o Art. 240 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o agressor que “produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente” poderá pagar multa e pegar pena de quatro a oito anos de reclusão.

Deepfake 

Na trama, o abusador utilizou da tecnologia de deepfake para alterar seu rosto e sua voz, se passando por uma atriz fictícia da novela. Essa técnica usa a Inteligência Artificial para combinar e sobrepor o rosto e a voz de alguém em outra pessoa. Na novela, o abusador fazia isso ao vivo. Na vida real, a tecnologia não é tão sofisticada assim, mas já existe, com custos por volta de R$ 150 mil em equipamentos, segundo especialistas.

O desenvolvimento de tecnologias como essa levanta o debate sobre como as plataformas desenvolvem medidas de segurança para proteger seus usuários, especialmente crianças. A dificuldade para identificar os criminosos também é uma preocupação, já que eles conseguem se esconder atrás de um rosto e uma voz modificada. 

Na quinta-feira, (4/5), o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), protocolou um projeto de lei de regularização do uso de tecnologia de inteligência artificial no Brasil. O texto do PL prevê que fornecedores e operadores do sistema de inteligência artificial sejam responsabilizados por danos eventualmente causados por essa tecnologia. 

Riscos psicológicos do assédio

Em Travessia, Karina desenvolve depressão ao ser chantageada pelo pedófilo, tentando suicídio algumas vezes. A vergonha de ter caído em um golpe e viver sob o medo de ter suas fotos divulgadas faz com que a menina se isole dos amigos e da família e comece a se automutilar.

A psicóloga Juliana Monteiro explica que esse tipo de violência gera um comportamento cerebral de alerta constante, onde a criança enxerga perigo “em tudo”. Apesar da euforia, a vítima começa a ficar mais reservada, se comunicando menos com a família e amigos, até se isolar completamente. “Um sistema nervoso que está em alerta afasta a criança do estado presente e de suas emoções. Então, ela fica como se estivesse um pouco congelada.”

Juliana também fala sobre as mudanças físicas na criança ou adolescente.

A gente vê nitidamente, numa leitura corporal, que essa criança está mais curvada, mais tímida, mais fechada, e o corpo a acompanha”, diz. Isso serve como sinais para pais e responsáveis de que alguma coisa errada está acontecendo com aquela criança. Outro indício pode ser o desempenho escolar, segundo a psicóloga. “Se a gente estiver atento e presente no cuidado com as nossas crianças, quando isso acontecer, a gente vai ter sinais para identificar.”

Juliana Monteiro, psicóloga

Como denunciar

A vítima e seus responsáveis devem procurar a polícia (190), a Delegacia da Mulher (197), o Disque 100 do Ministério dos Direitos Humanos ou o Conselho Tutelar do seu estado; no caso do Rio, o número vai depender da zona. A SaferNet, associação civil de direito privado em defesa dos Direitos Humanos na Internet, também recebe denúncias, mas apenas de páginas que estejam circulando imagens de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. Para denunciar, acesse a Central Nacional de Denúncias da Safernet Brasil

Apoio à vítima

Tanto a psicóloga, quanto a SaferNet alertam que se deve evitar julgar a criança ou o adolescente vítima de assédio. Juliana declara que é preciso acolher, pois assim os riscos psicológicos são minimizados. A forma como os pais vão olhar para essa criança e como a dor dela vai ser escutada também interfere na situação.

Nessas horas, a gente não pode apontar os erros, porque a gente afasta as nossas crianças e adolescentes da gente. E tudo que eles precisam é de apoio e acolhimento”.

Juliana Monteiro, psicóloga

A ONG alerta que o julgamento aumenta o medo da criança de relatar os abusos se estiverem vivendo alguma violência online.

Como alertar as vítimas

Diálogo aberto sobre os riscos de conhecer pessoas pela Internet, ensino sobre o que é inapropriado entre adultos e crianças, uso da Internet apenas com o acompanhamento dos pais nos primeiros anos e educação sexual nas escolas são algumas medidas defendidas pela SaferNet para prevenir que crianças e adolescentes sejam vítimas do abuso sexual ou estupro virtual. 

Dicas para se proteger:

  • Não aceitar pedido de amizade de pessoas que você não conhece;
  • Sempre desconfiar de ofertas, pedidos ou contatos com pessoas que você não tem certeza de quem são;
  • Procurar informações pessoais no perfil de alguém com quem esteja conversando para saber se o perfil não é fake;
  • Informar aos pais e responsáveis qualquer pedido de foto ou vídeo de uma pessoa desconhecida;
  • Excluir e bloquear qualquer pessoa que peça fotos íntimas;
  • Denunciar aos órgãos legais qualquer caso de assédio online.

(*) Beatriz Amat e Júlia Motta são estudantes de jornalismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro e fazem parte do Curso de Extensão Conexão UFRJ com o Maré de Notícias.

Compartilhar notícia:

Inscreva-se

Mais notícias
Related

Migrantes africanos preservam a origem e criam novas expressões culturais na Maré

Dentro do bairro Maré, existe um outro bairro: o Bairro dos Angolanos. O local abriga a comunidade migrante no território que, de acordo com o Censo Maré (2019), conta com 278 moradores estrangeiros.

Por que a ADPF DAS favelas não pode acabar

A ADPF 635, em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), é um importante instrumento jurídico para garantir os direitos previstos na Constituição e tem como principal objetivo a redução da letalidade policial.