Flavinha Cândido*
No Brasil, a segregação racial não se limita apenas aos confins das favelas e periferias, mas estende suas raízes para além desses territórios classificados externamente como hostis ou marginalizados. Abdias Nascimento, renomado ativista e intelectual afro-brasileiro, e Lélia Gonzalez, socióloga e militante do movimento negro, denunciaram com veemência essa realidade, desmascarando a falsa democracia racial que persiste em nosso país.
Abdias Nascimento, em sua obra seminal “O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado”, destaca como a segregação espacial e as disparidades socioeconômicas impostas às comunidades negras são reflexos de uma estrutura de poder que perpetua a opressão racial. Ele ressalta que, ao deixarem as favelas e periferias, os corpos negros são imediatamente confrontados com barreiras e preconceitos que reforçam a hierarquia racial vigente. Por sua vez, Lélia Gonzalez, em seus escritos e discursos, traz à tona a noção de “colonialismo interno”, argumentando que o racismo no Brasil é profundamente enraizado na mentalidade e nas estruturas sociais do país. Ela desafia a ideia de uma harmonia racial ao expor as desigualdades estruturais que permeiam todos os aspectos da vida cotidiana, inclusive além das fronteiras das favelas e periferias.
A verdade é que, quando um corpo negro e um corpo branco deixam as favelas ou periferias, cada um é recebido pelo racismo estrutural de maneiras diferentes, evidenciando o privilégio da cor branca em espaços sociais. Enquanto o corpo branco muitas vezes desfruta de acesso facilitado e tratamento preferencial, o corpo negro é submetido a suspeitas, discriminação e violência baseadas unicamente em sua cor de pele. Essa disparidade de experiências revela a persistência de uma estrutura racializada que perpetua a marginalização e a desigualdade.
É inegável que durante operações policiais ou conflitos entre grupos de civis armados ou milícias, todos os moradores dessas áreas sofrem, independentemente de sua etnia. No entanto, fora desses contextos, os negros são sempre alvos preferenciais. Uma pesquisa do Instituto Locomotiva, divulgada em março de 2022 pelo Jornal Nacional, revelou que uma em cada três pessoas negras já sofreu racismo no transporte público, destacando como circular pelas cidades se torna um desafio para esses indivíduos, mesmo em ambientes supostamente neutros. Pense nos desafios de se deslocar numa cidade brasileira qualquer: transporte lotado, congestionamento, passagem cara. Tudo isso é verdade. Mas, se você é negro, no topo da lista, além desses problemas o seu incluí o de sofrer racismo.
É importante lembrar do caso de Evaldo dos Santos Rosa, brutalmente assassinado com 80 tiros enquanto estava em seu carro, ilustra a gravidade dessa realidade. O que poderia explicar tal ação? A cor da pele de Evaldo, um homem negro, foi o único fator que justificou o uso excessivo de violência. Outro exemplo alarmante é o caso de Karine Fernandes dos Santos Santana, uma mulher negra que foi à delegacia, em 19 de maio de 2017, para prestar queixa por calúnia e difamação, mas acabou sendo acusada de furto e não teve seu casaco devolvido pela polícia, mesmo após provar a propriedade da peça. Esses episódios evidenciam como a cor da pele influencia drasticamente a percepção e tratamento dispensados pela sociedade e pelas instituições, fora da favela e das periferias, o corpo negro é classificado como “o que pode cometer um crime”.
Djamila Ribeiro aborda o conceito de “privilegio da branquitude”, destacando como esse privilégio se manifesta quando alguém não é alvo de discriminação por sua cor.
Em suma, é crucial desafiar e desconstruir as estruturas racistas que permeiam todos os aspectos de nossa sociedade, tanto dentro quanto fora das favelas e periferias. Somente através do reconhecimento e combate ao racismo estrutural poderemos construir um país verdadeiramente igualitário e justo para todos os seus cidadãos. Como disse Djamila Ribeiro: “O racismo é estrutural, é diário, é velado e é naturalizado. E precisa ser combatido”.
Essas reflexões ganham ainda mais relevância quando confrontadas com casos chocantes de violência racial, como o ocorrido no Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro. A ex-jogadora de vôlei, branca, que chicoteou o motoboy. O homem, identificado como Max Angelo dos Santos, corre e tenta se esquivar, mas suas costas ficam marcadas pelos golpes. As imagens, que remetem à punição praticada por meio de açoite no período em que pessoas eram escravizadas no país, foram registradas em um local chamado de “nobre” pela sociedade, onde se esperaria civilidade encontra-se racismo. Esse fato escancara a crueldade do racismo e o privilegio da cor, demonstrando que, mesmo fora das favelas e periferias, o corpo negro não está isento de discriminação e violência, pois o racismo não faz distinção de classe ou localização geográfica.
*Flavinha Cândido é moradora da Maré e colunista no Maré de Notícias, formada em Letras pela UERJ, Pós-graduada em Letramento Racial e Idealizadora da Página no Instagram Racial Favelado