A luta pelo saneamento e os esforços para restaurar o ecossistema mareense

Data:

Henrique Silva

Edição #162 – Jornal Impresso do Maré de Notícias

‘Viagem a costa da Maré

“Ao meio-dia e meia, partimos em direção ao Engenho da Pedra, distante 1.200 metros. Navegamos pelo Canal do Fundão, passando pela Pedra da Cruz. Contornamos a orla de manguezais de Rhizophora mangle e Avicennia, na Coroa das Negras. Enquanto bandos de garças voavam, avistamos o Morro de Inhaúma, a Ponta do Tibau, e, do lado oposto, a Ilha do Fundão, Pindaíbas de Cima e de Baixo, e a Ilha do Bom Jesus. Essas ilhas, junto com a Sapucaia e o Pinheiro, formam uma bacia conhecida como Sacco do Mangue Alto, com três saídas: o canal do Bom-Jesus-Sapucaia, o canal do Cação, entre esta e a do Pinheiro, e o de Inhaúma, entre esta ilha e o porto homônimo. Remamos até esse ponto, percorrendo 2.800 metros, com Cony e José Vidal nos remos e eu no leme”.

O trecho acima foi retirado do jornal Correio da Manhã de maio de 1936, escrito por Magalhães Corrêa, parte da série de matérias intitulada: A Guanabara como natureza – Águas Cariocas. Nesta edição, Corrêa descreve o cenário da orla onde atualmente está localizado o território da Maré. O território possuía uma flora que já não é mais encontrada, como o mangue Avicennia (Mangue Preto) e o Rhizophora mangle (Mangue Vermelho) nessa região da baía, que inclui o Conjunto de Favelas da Maré. 

Os manguezais têm grande importância para as comunidades costeiras em todo o mundo, garantindo a alimentação e a proteção dessas áreas. Além de abrigarem uma vasta biodiversidade, esses biomas servem como refúgio para várias espécies de peixes, são eficazes na captura de carbono e ajudam a mitigar os gases de efeito estufa.

Transformação da Cidade e da Baía

Ao analisar mapas e cartas que retratam a Baía de Guanabara na segunda metade do século 19, é possível observar várias praias e espaços de costa que já não existem mais. Isso se deve ao avassalador processo de urbanização e à ideia de “modernização da cidade” no início do século 20. 

Desde então, houveram muitas transformações na paisagem natural do espaço urbano: a drenagem de pântanos e mangues, os aterros que avançaram sobre o mar no entorno de toda baía, o desmonte de morros. Ao longo dos anos, sem estudos sobre os impactos dessas obras, os futuros moradores cariocas começaram a sofrer as consequências.

Cúpula da Terra

As consequências das mudanças climáticas vêm sendo discutidas globalmente há alguns anos e, um capítulo importante dessa história, foi escrito na cidade do Rio de Janeiro, sede da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Unced, na sigla em inglês). 

A Rio-92, como ficou conhecida, foi realizada em comemoração aos 20 anos da Conferência de Estocolmo, em 1972, e reuniu autoridades do mundo inteiro. Considerada a “maior conferência ecológica de todos os tempos”, a Rio-92 deu origem a diversos acordos internacionais e foi um marco para a diplomacia brasileira. 

No entanto, uma das principais propostas feitas no contexto do evento não teve muito êxito. O Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG) contou com  financiamento do Banco Mundial e tinha o objetivo de sanear a parte continental da baía para que a poluição não chegasse na água. Porém, as obras feitas entre 1991 e 2006, não beneficiaram a população que mais precisava: a que vive no entorno da baía.
No contexto do PDPG, foram construídas estações de tratamento de esgoto ao redor da baía, como a Estação de Tratamento Alegria, no Caju. Esta estação está estrategicamente localizada na saída da baía, nos fundos do conjunto de favelas da Maré, mas infelizmente não opera com sua capacidade total. Além disso, mesmo estando ao lado da Maré, até os dias de hoje não há qualquer conexão entre a estação e o conjunto de favelas.

Sem direito a saneamento

Como mencionado em edições anteriores desta série, historicamente, a Maré passou por grandes aterros realizados pelos governos Federal, Estadual e Municipal para a construção de conjuntos habitacionais, da Cidade Universitária da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e das vias expressas, o que acabou por bloquear a conexão direta da Maré com a Baía de Guanabara.

Ao longo das obras do Projeto Rio, nos anos 1980, foram aterrados cerca de 256 hectares no entorno da baía, deslocando assim toda a orla original e reduzindo o canal entre a Maré e a Ilha do Fundão. Nessa mesma obra, foi feita uma ligação de parte do esgoto do conjunto com a estação de tratamento da Penha. No entanto, até hoje, mais da metade dos domicílios da Maré não possuem nenhuma ligação com uma estação de tratamento.

Por conta da negação estrutural de um direito fundamental para a dignidade humana, o saneamento básico, todo o esgoto produzido neste território é jogado diretamente nas águas da baía, causando diversos problemas que afetam a sociedade em dimensões individuais e coletivas.

Na época do Projeto Rio, o professor da UFRJ, Elmo Amador, foi um dos responsáveis pelo grupo de pesquisadores que elaboraram um parecer sobre o aterro da Maré para o governo. Em entrevista para o Jornal do Brasil, em junho de 1979, ele condenou a obra e disse: “na área que se pretende aterrar (o mangue do Caju até Caxias), o necessário são obras de saneamento, desassoreamento, reconstituição do sistema de circulação de águas e regularização do entorno”.

Linha Vermelha

Outra obra da cidade do Rio que acabou com a conexão entre a Maré e a baía foi a construção da Linha Vermelha, inaugurada em 1992, que produziu uma série de aterramentos e, por consequência, é uma das causas de vários alagamentos até hoje. Durante a construção, as associações da Maré protestaram e fizeram um estudo junto com pesquisadores da UFRJ sobre os impactos da construção da via. 

Eliana Sousa Silva, à época presidente da Associação de Moradores e Amigos da Nova Holanda, já afirmava:

“A Avenida Brasil está na nossa frente e teríamos a Linha Vermelha atrás. A Nova Holanda faz parte, com outras oito comunidades, da área da Maré, que se estende ao longo da Avenida Brasil. Somos, ao todo, cem mil pessoas. A região é aterrada e os engenheiros dizem que não suportaria novas obras. Com o tempo, começariam a aparecer infiltrações por toda parte, colocando em risco a Maré. Nós temos essa preocupação. Não seremos afetados com desapropriações, mas qual é a segurança que teremos se esta obra for mesmo realizada?”.

Busca por soluções

Com o objetivo de integrar de maneira crescente as práticas de desenvolvimento sustentável no conjunto de favelas da Maré, a Redes da Maré, através do projeto Ecoclima, tem trabalhado para diagnosticar problemas e buscar soluções para o território.

O projeto, que acontece em parceria com a Petrobras e com o departamento de engenharia ambiental da UFRJ, tem implementado um conjunto de técnicas e tecnologias inovadoras que contribuem para a conservação ambiental e a mitigação dos impactos das mudanças climáticas. 

Uma das quatro tecnologias ambientais desenvolvidas é a restauração de um hectare de manguezal, o que inclui a remoção de resíduos sólidos, a proteção do espaço contra novos resíduos e o plantio de espécies nativas de mangue.

Iniciativas como a recuperação de manguezais proposto pelo Ecoclima representam passos importantes para reduzir impactos, promover a sustentabilidade e preservar o patrimônio natural da região. O programa é também importante pela produção de conhecimento como ferramenta de incidência política, para cobrar políticas públicas de meio ambiente, urbanização e saneamento e melhorar as condições de vida dos moradores  da Maré e da Baía de Guanabara.  

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