Ministra Anielle Franco
É uma honra escrever no para o jornal Maré de Notícias, esse espaço de democracia, resiliência e potência transformadora. Mais ainda em novembro, mês da Consciência Negra, em homenagem ao grande líder negro Zumbi do Palmares e Dandara, vozes que seguem ecoando para garantir a todas as pessoas o direito de buscar o próprio sonho.
Ninguém avança sem valorizar o chão que pisa, é assim que caminho e resisto. Essa é minha linguagem, meu método de fazer política. É preciso falar sobre o poder. Ele tem muitas camadas, artimanhas e armadilhas, mas é essencial ocuparmos todos os espaços para avançar na transformação social pela qual nos empenhamos em conquistar.
A representatividade irradia transformação, teoria e prática num único movimento. São muitas as reflexões sobre a sabedoria ancestral de usar o poder em favor da luta por justiça social e por cidadania para as pessoas pretas do nosso país. A autoridade a mim conferida como Ministra de Estado da Igualdade Racial, a visibilidade e a audiência ao meu discurso como representante do estado, revestem de holofote tudo o que eu sempre disse antes de chegar aqui.
Estar no poder – com poder – viabiliza que eu fale sobre as meninas faveladas como a que fui; que reforce os direitos da população migrante, como as que conheci tão de perto no meu trabalho como tradutora daquelas pessoas sofridas nos EUA; que traga ao centro dos debates a realidade da vida cotidiana das pessoas negras, especialmente das mulheres e famílias matriarcais.
Que denuncie o racismo como uma urgência a ser enfrentada coletivamente, mirando a perspectiva positiva da igualdade e da dignidade, que só será viável a partir de políticas públicas consistentes e duradouras. O poder faz reverberar, situação oposta à invisibilidade que o povo negro vivencia, com a negação do acesso ao direito básico da escuta atenta, da narrativa de suas próprias vidas.
Há 15 anos eu era moradora da favela da Maré, com muito orgulho. Não havia caminhos para tratar dos direitos violados, não existia escuta para fora. Minha irmã lutou para ser vereadora justamente para dar voz a todas nós, mulheres pretas, muitas vezes cidadãs sem cidadania. Foi preciso chegar neste espaço, que muitos consideram o topo, para poder trazer o que sempre trouxe como pessoa que está na base.
É como ministra Anielle Franco que me dirijo ao povo negro do Conjunto de Favels da Maré e do Brasil como absolutamente uma igual. Fortalecer a democracia é fortalecer todo e qualquer espaço político. Nós fazemos política a partir do momento em que estamos vivas. Pessoas negras, quando vestem turbantes, usam guias e fios religiosos ou saem com suas vestimentas, quando se expressam com o próprio jeito de falar, de agir, de sorrir, elas fazem política.
Da mesma forma, política se faz na ação de luta, negociação, planejamento e construção da mudança, nas universidades, dentro das favelas, nas penitenciárias, na quadra de vôlei, no mercado, nas bancas científicas, ao sair de casa para o mundo. Essas lutas cotidianas precisam ser visibilizadas e reconhecidas como relevantes para o desenvolvimento do país. Não é apenas num ministério ou no parlamento que se faz política.
A representatividade opera este poderoso estado de mudança, simbólico, que ressignifica as referências, a autoestima, a postura frente ao mundo. Altera a voz de quem fala e a atenção de quem ouve. Por isso, é tão importante termos mais pessoas negras na tomada de decisão das empresas públicas, privadas, parlamentos.
Nestes 20 meses de ministério, vivemos desafios e muitas conquistas, sempre abrindo diálogo com a população, com os movimentos. Conseguimos atingir o maior número de titulação de terras quilombolas numa gestão. Trabalhando junto com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), fizemos 65 titulações no Brasil, em menos de dois anos.
Lançamos a primeira política para povos ciganos do Brasil, a segunda no mundo. Aprovamos a renovação da Lei de Cotas na universidades, estamos trabalhando para aprovar o aprimoramento das lei de cotas no serviço público, lançamos o Plano Juventude Negra Viva, vamos lançar o Plano de Comunicação Antirracista, fizemos incidência por emprego e renda para pessoas negras, avançamos Pacto de Equidade nas Empresas Estatais, atuamos por candidaturas femininas e negras, no enfrentamento à violência política e ao assédio na administração pública.
Temos um sonho muito poderoso para o Brasil e sabemos que este governo sonha conosco ao recriar o ministério e trazer a agenda da equidade étinico-racial para o centro do debate público. E ainda que o desafio seja gigantesco, ouso dizer que sabemos como fazer o extraordinário: olhar para a trivial realidade da vida. Ouvir o que pensa nossa população nos permite buscar conjuntamente um futuro melhor para todas as pessoas, que garanta não o básico, mas a plenitude. Escutar o povo negro é fortalecer a democracia.