Valores civilizatórios afro-brasileiros marcam construção do Bairro Maré
Edição #166 – Jornal Impresso do Maré de Notícias
Henrique Silva
Segundo o Censo Maré (2019), dos quase 140 mil habitantes, 61,2% se autodeclaram pretos ou pardos. Ou seja, a Maré é negra. Das comunidades, a Nova Holanda abriga a maior população autodeclarada preta, com 2.558, 18,5 % dos moradores.
A educadora Azoilda Trindade desenvolveu o conceito de “valores civilizatórios afro-brasileiros”, uma reflexão sobre as contribuições culturais, éticas e filosóficas das populações afrodescendentes para pensar a formação da nossa sociedade. Os valores civilizatórios afro-brasileiros são princípios e práticas culturais que foram transmitidos e preservados pelas populações afrodescendentes no Brasil, originários dos povos africanos e adaptados ao contexto brasileiro.
Esses valores são fundamentais para a compreensão das contribuições africanas à formação da identidade nacional brasileira, especialmente no campo da cultura, espiritualidade, sociabilidade e resistência. Esses valores também foram importantes para construção do território da Maré e vamos abordar alguns deles a seguir.
Educação, oralidade e comunidade
A relação entre educação e cultura afro-brasileira é evidenciada em uma matéria de 1984 do jornal O Globo, intitulada: Escola também ensina a ler com atabaques e tamborins. A professora Ivanise Amorim, da Escola Nova Holanda, notou que alunos considerados “especiais” não se adaptavam aos métodos tradicionais de ensino, revelando frustração com a cartilha oficial.
A professora viu na cultura do samba, especialmente, o exemplo do bloco Mataram meu gato, fundado na mesma favela, uma oportunidade para se aproximar desses alunos. Ivanise decidiu integrar a música ao processo educativo, e essa abordagem permitiu uma expressão mais natural, reforçando a conexão emocional e espiritual dos alunos com o aprendizado. A iniciativa promoveu também a oralidade e a coletividade, por meio do compartilhamento de histórias e práticas culturais, conceito presente na mandala dos valores civilizatórios afro-brasileiros, organizados por Azoilda.
Saúde e resistência
Na edição de abril do Maré de Notícias, destacamos a história de José Carlos, ex-presidente da Associação de Moradores da Nova Holanda e o primeiro presidente do conselho distrital da CAP 3.1, nos anos 1990. Em entrevista ao jornal O Povo, em novembro de 1999, ele discutiu as atividades planejadas para o 20 de Novembro daquele ano.
O ativista exemplificou os valores civilizatórios afro-brasileiros de resiliência e resistência ao organizar um evento no Dia da Consciência Negra na quadra da escola de samba Gato de Bonsucesso. José Carlos enfatizou a participação de grupos de música afro-brasileira e levantou a questão da saúde da população negra, mencionando as necessidades específicas dessa comunidade. Sua iniciativa não apenas promoveu a cultura afro-brasileira, mas também integrou os temas cultura e saúde enfatizando a luta por melhores condições de vida.
Corporeidade LGBTQIA+
A corporeidade da pessoa negra é representada de diversas maneiras, destacando a relevância da história do Conjunto de Favelas da Maré e do bairro Maré. Neste contexto, a população LGBTQIA+ se revela como parte fundamental da identidade favelada, e a intersecção com a raça confere ao povo negro um papel significativo na construção do território.
Os shows Noite das Estrelas, promovidos pela comunidade LGBTQIA+, sobretudo,por pessoas transexuais nos anos de 1980 e 1990, são exemplos notáveis de materialização dos valores afro-civilizatórios de resistência, corporalidade e axé. Os eventos eram integrados aos movimentos culturais populares do território, como bailes funks e festas juninas, principalmente nas favelas Nova Holanda e Rubens Vaz.
Com o tempo, esses eventos ganharam espaço próprio e se expandiram por todo o território da Maré, e além. Graças a um trabalho de pesquisa realizado pelo coletivo Entidade Maré, em 2020, foi possível nos debruçarmos sobre essas histórias.
Ancestralidade e tempo circular
A ancestralidade é um elemento fundamental na construção da identidade coletiva e pessoal na cultura afro-brasileira, a valorização e o respeito pelos ancestrais são centrais. A ancestralidade estabelece uma conexão com a história, com a origem e valores transmitidos pelos antepassados, influenciando a forma como se vive e se entende o presente.
A narrativa do Entidade Maré destaca como as vivências e lutas de corpos LGBTQIA+ negros no conjunto de favelas, ao longo das décadas, fazem parte de uma linhagem ancestral que transcende laços sanguíneos, sendo transmitida por meio da memória, da arte e da resistência.
As histórias de figuras como, Derley, que era pai de santo, e outros artistas e lideranças LGBTQIA+ ,conectam-se com as gerações atuais como Dominyck Marcelina e as irmãs Lino. O trabalho honra e expande o legado, reforçando a continuidade e fazendo do tempo, não uma linha contínua, mas um círculo que abraça diferentes gerações.
Vale ressaltar que, durante o processo de pesquisa para a construção do acervo de matérias jornalísticas sobre o Conjunto de Favelas da Maré, não foi encontrado nenhum registro nos jornais dos anos 1980 e 1990, referente aos shows da Noite das Estrelas.
Esse fato reforça o preconceito histórico contra a população trans, preta e favelada, mas também sublinha o papel da memória comunitária. O esforço do coletivo Entidade Maré em resgatar e evidenciar essas histórias é um exemplo importante da resistência e preservação dessa memória.
Avançar em coletivo
Em uma entrevista realizada nos anos 1980 pela associação de moradores da Nova Holanda, durante a luta dos moradores do Duplex (Tijolinho) por novas moradias de alvenaria, Maria Poubel, figura histórica das lutas da Maré, descreveu como a comunidade se uniu para exigir melhores condições de vida. No trecho transcrito do vídeo do projeto Coopman, dona Maria, conta como foi esse dia:
“Ah, essa luta nossa foi muito demorada, mas valeu a pena a gente lutar por ela, porque nós fomos na Caixa Econômica, e saímos daqui com as crianças. A comunidade, um bocado da comunidade. Teve gente que não tinha nem dinheiro. Porque nós ficamos lá o dia todo, não tinha dinheiro. A gente com fome, às crianças com fome e, o que tinha a mais, comprava um pão e dava pra outra criança que não tinha e pra mãe, que não tinha levado nada pra criança comer. E assim foi uma luta incrível. A gente ainda não conseguiu tudo não, mas ainda vamos conseguir muito mais”.
A ação destaca o valor civilizatório afro-brasileiro da coletividade, evidenciado na solidariedade e na ajuda mútua entre os membros da comunidade. A vida comunitária, a solidariedade e o compartilhamento são valorizados, refletindo uma visão de mundo que prioriza o coletivo em detrimento do individualismo. Ao mesmo tempo, a luta persistente por moradia digna reflete os valores de resiliência e resistência, com a comunidade permanecendo firme diante das adversidades e nutrindo a esperança de conquistar mais no futuro.
Terminamos por aqui esta série de reportagens que celebra as memórias da construção do bairro Maré. Em janeiro deste ano, o Conjunto de Favelas completou 30 anos e, ao longo dos últimos meses, foram abordados temas centrais como a construção do território. Encerrar essa série com foco na racialidade do conjunto, só comprova a espiritualidade, mas também o marco civilizatório afro-brasileiro como uma dimensão integradora da vida.