Pâmela Carvalho
As favelas do Rio de Janeiro – hoje espaços de resistência -, historicamente se formaram como reflexo de um processo de exclusão social e racial, que remonta ao período pós-abolição da escravidão no Brasil. A abolição, em 1888, não trouxe a inclusão dos negros escravizados no modelo econômico, social e urbano do país. Pelo contrário, inaugurou uma era de exclusão para a população negra. O Rio de Janeiro, então capital do Brasil, foi um dos maiores palcos dessa segregação racial e espacial.
A exclusão da população negra
No final do século 19 e início do século 20, com a urbanização acelerada do Rio de Janeiro, as elites brancas promoveram uma série de políticas de “higienização” urbana. Essas políticas, empurraram trabalhadores negros para os morros e áreas periféricas, onde passaram a construir moradias improvisadas. A criação das favelas é resultado direto dessas políticas racistas que visavam afastar a população negra dos centros econômicos e políticos da cidade.
Um exemplo emblemático é o surgimento daquela que é considerada a primeira favela: o Morro da Providência. Com o fim da Guerra de Canudos (1896-1897), ex-combatentes, muitos deles negros, que não receberam as recompensas prometidas pelo governo, ocuparam o morro. A “favela” se tornou, então, sinônimo de resistência, mas também de exclusão estatal.
Ao longo dos anos, as favelas se multiplicaram à medida que o Estado continuava a ignorar as necessidades básicas da população negra e pobre. A ausência de políticas habitacionais e o descaso com o bem-estar dessa população consolidaram a favela como o espaço de moradia da maioria dos negros na cidade. As favelas do Rio de Janeiro, hoje, são predominantemente negras: de acordo com dados de 2011 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), cerca de 66,2% da população residente nas favelas do Rio, se autodeclara preta ou parda.
População negra da Maré
O Conjunto de Favelas da Maré é um exemplo vivo da relação entre raça e território. Composto por 15 comunidades, a Maré abriga cerca de 140 mil pessoas, segundo o Censo Maré de 2019. Dentre essa população, mais de 62% se autodeclaram negras (pretas ou pardas), demonstrando como a favela é um espaço onde a identidade racial se entrelaça com a questão territorial.
As primeiras ocupações na Maré ocorreram na década de 1940, com famílias que migraram para o território após políticas de remoção.
Desigualdade e violência
A relação entre a população negra e o território da favela, infelizmente, é marcada pela violência estrutural em diversas circunstâncias. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Rio de Janeiro é o estado com o maior número de mortes violentas, sendo a população negra a mais afetada. Em 2020, 78% das vítimas de homicídios no estado eram negras, representando 53% da população total do Rio (FBSP, 2020).
Essa violência institucional, resultado do racismo estrutural, é reforçada pelo estigma que as favelas carregam. Para muitos, a favela é vista como um “lugar de crime”, o que legitima, aos olhos de parte da sociedade, a militarização desses territórios e o tratamento diferenciado dado a seus moradores. Porém, a favela também é um lugar de potência, de organização comunitária, de cultura e resistência negra.
Resistência e construção da identidade
Embora as favelas sofram com práticas de necropolítica – a política da morte -, elas também são espaços de resistência e produção cultural. A favela, como território negro, é um espaço de criação e fortalecimento da identidade racial. A cultura negra que emerge desses espaços é rica e diversa.
Na Maré, o trabalho de valorização das identidades negras tem sido central. Projetos como a Casa Preta da Maré, o Núcleo de Memórias e Identidades dos Moradores da Maré e a Escola de Letramento Racial da Maré buscam fortalecer a consciência racial e promover debates sobre o racismo e a história negra dentro da favela. Através dessas iniciativas, jovens negros têm a oportunidade de se reconhecerem como sujeitos históricos, capazes de escrever suas próprias narrativas.
A partir dessas insurgências e resistências, os moradores da Maré e de outras favelas do Rio, têm construído estratégias de enfrentamento às desigualdades, utilizando a cultura como ferramenta de luta e expressão.
O território da favela é um espaço de potência negra. Ao reconhecermos isso, estamos admitindo a importância da população negra na construção da cidade e da cultura carioca. Raça e território, no caso das favelas do Rio, estão intimamente ligados. É a partir dessa compreensão que podemos traçar estratégias de enfrentamento ao racismo e à desigualdade social.
O futuro das favelas está intrinsecamente ligado à superação do racismo. É necessário que o Brasil, como um todo, reconheça a dívida histórica que tem com a população negra e promova políticas que garantam a justiça social e a igualdade de direitos para todas as pessoas.