Maré de Notícias #89 – junho de 2018
Mais de 400 jovens da Maré matriculados nas 14 turmas do Telecurso
Maria Morganti
“É necessário sempre acreditar que o sonho é possível, que o céu é o limite e você, truta, é imbatível”. Edi Rock
O trecho da música A vida é desafio, do grupo Racionais MC, estava escrito em uma folha A4, pregada na parede da sala de aula, do prédio da Redes da Maré, numa tarde ensolarada de segunda-feira. Ao lado, um cartaz com uma frase de Martin Luther King, líder negro norte-americano, pacifista, assassinado em 1968, aos 39 anos.
“Eu tenho um sonho”
Diante da turma, a primeira das 14 que reúnem mais de 400 alunos, do Telecurso na Maré, está o professor Luan Costa. A iniciativa possibilita a conclusão do segundo seguimento e do ensino médio em um ano e meio.
A pré-inscrição começou no dia 19 de fevereiro e foi até o começo de março. “A procura foi muito grande”, diz Patrícia Viana, integrante do Núcleo de Educação da Redes. Na lista dos critérios para participar estavam ser morador da Maré e ter disponibilidade de três horas por dia, quatro vezes por semana. As aulas acontecem em diversas áreas da Maré, como Nova Holanda e Vila do João. Essa iniciativa é uma tentativa de contribuir na solução de um dos mais graves gargalos educacionais do Brasil: o grande número de jovens e adultos que interromperam os estudos e enfrentam dificuldades, entre elas, a de se integrar ao mercado formal de trabalho.
Experiência acumulada
O Telecurso foi criado com o objetivo de ampliar o acesso à educação. A partir dos anos 70, passou a levar educação de qualidade pela TV, e ajudou a formar cerca de 7 milhões de estudantes nos ensinos fundamental e médio em todo o país. A partir dos anos 90, uma metodologia presencial foi desenvolvida a partir do material do Telecurso. Desde 1995, 1,6 milhão de estudantes se formou em escolas públicas de 12 estados brasileiros, em programas coordenados pela Fundação. No Rio, para atender a jovens e adultos que estão fora da escola, a Fundação Roberto Marinho tem uma escola que adota o Telecurso, e está presente no Jacaré, em Manguinhos, Santa Marta, Porto da Pedra (São Gonçalo), Rio Comprido, Jacarepaguá e na Maré.
Sonhos interrompidos
Segundo o Ministério da Educação (MEC), de 2013 a 2017, as matrículas no 9º ano do Ensino Fundamental caíram 14,2%,no Rio de Janeiro. O Censo Escolar da Educação Básica 2017 revelou que a redução do número de matrículas acontece nos ensinos Fundamental e Médio pelo 4º ano consecutivo. Menos estudantes estão chegando nos últimos anos. A evasão escolar, no Ensino Médio, chegou a 11%, segundo os dados da pesquisa. Ou seja, quem chega, se chega, ao fim do ensino fundamental, pode não seguir no ensino médio.
Os números tomam forma de gente na história de vida de jovens como Júlio Cesar Acioli e Silva, de 19 anos; Amanda Marques, de 17 e Luciana Silva, de 20. Por motivos diferentes tiveram que deixar a escola. Mas têm em o comum os sonhos interrompidos e a possibilidade de mudar suas histórias.
Amanda, a caçulinha dos três, é vidrada no k-pop, “é a cultura popular coreana que nem tem na cultura popular brasileira”, explica didaticamente. Passou os últimos meses em casa, realizando tarefas para ajudar a mãe, empregada doméstica, e lendo romances. “Em um ano eu leio mais de seis livros. Gosto de livros que inventam um mundo novo. Pode ser até de ficção científica, mas tem de ter romance”. A jovem, que se define como tímida, diz para a repórter: “está sendo difícil vir aqui falar com você”. Amanda parou de estudar, porque sofreu bullying na escola. “Eu tentava me enturmar e não dava. Não me achava nem na escola e nem nos amigos. Parei de ir pra escola por desânimo. Também perdi mais de 20kg”.
Depois de enfrentar uma forte depressão, sem acompanhamento médico, agravada por problemas externos, Amanda conta que quis voltar a estudar com o projeto de tornar-se professora de Inglês e de Português para estrangeiros, ir para a Coreia do Sul e realizar um sonho triplo: “Eu queria voltar a estudar para dar orgulho a minha irmã, e fazer faculdade para realizar o sonho da minha avó. Porque ela pensava muito em terminar os estudos dela. Estou fazendo pela minha irmã, minha mãe e minha avó”.
Para Júlio, que é barbeiro no Parque União e nasceu no Recife, a perda da tia e o horário do trabalho impediram que ele continuasse na escola, ficou desanimado. Depois teve de optar entre o trabalho, que tinha a maior clientela à noite, e as aulas, que também eram noturnas. A necessidade de pagar as contas foi mais urgente naquele momento que o boletim escolar. Hoje, matriculado na turma da manhã, diz que tudo mudou. “Agora eu encontrei a oportunidade de voltar a estudar. Espero concluir o Ensino Fundamental, o Ensino Médio, fazer uma faculdade de Educação Física ou Contabilidade e ter uma vida melhor”.
Luciana, que tem 20 anos, diz que durante muito tempo “não queria ter coisa séria com os estudos”. Com 13 anos, já fazia unha (manicure), ofício que tem como profissão até hoje. Mesmo assim, a distância da escola e os problemas familiares pesaram e ela teve de parar de estudar. Depois, já casada, tentou voltar. Se matriculou, começou a frequentar as aulas, até que, ao fim da primeira e única gestação, há dois anos, parou mais uma vez. Mas não desistiu. “Eu falei, já deu o tempo de ela desmamar, e eu procurar o estudo”. Ela está mais uma vez matriculada. “Espero terminar os meus estudos; já estou pensando em colocar minha filha na escola ano que vem. Não quero que ela passe pelo que eu passei, não. Eu penso em fazer faculdade, eu acho tão bonito quem vai para a faculdade… É um sonho”.
Metodologia transformadora
Único paranaense do time de professores, Bruno Dias, de 29 anos, conta que muitos foram levados a deixar a escola por desinteresse e isso significa “ falta de assistência, de algumas políticas públicas eficazes para Educação”. O professor ressalta que a metodologia do Telecurso prioriza a criação do laço afetivo com a turma, para, a “partir do conhecimento deles, construir outros conhecimentos”.
“Nada que vai ser ensinado aqui vai ser uma imposição. A escola, às vezes, tem um pacote de conteúdos que precisa ser passado e transmitido para os estudantes. Um modelo conteudista, no qual os estudantes têm de absorver aquele conteúdo, no qual muitas vezes eles não veem aplicabilidade. Aqui, todas as aulas são contextualizadas com a história, com o porquê daquele conteúdo, e qual é a aplicabilidade dele; de Matemática, de Português, no cotidiano”.
Tirando o sonho da gaveta
A gerente-geral da Educação da Fundação Roberto Marinho, Vilma Guimarães, explica que o Telecurso tem como especificidade considerar a história de vida de cada um, para que os alunos possam aprender, com prazer. “Eles perdem os medos e rótulos, que muitas vezes foram dados em suas experiências escolares e que faziam eles pensarem que falharam, e não o sistema. Esse reencontro com as competências, habilidades e essa possibilidade de produzir conhecimento ressignificam a prática escolar. Eles descobrem rapidamente que sabem muito. Estou muito feliz com essa parceria; de poder estar com a população da Maré, de poder somar esses conhecimentos que a Redes da Maré acumula a serviço da população. Podemos gerar uma transformação na vida de tantas pessoas”, finaliza.
Na prática, é a possibilidade de gente como Júlio, Amanda e Luciana finalmente tirarem o sonho da gaveta de uma vez por todas.