“ Todo mexerico, todo desentendimento carregado emocionalmente … contém o elemento da projeção. Toda elaboração da imagem de um inimigo, por exemplo, através de rancorosas polêmicas pela imprensa, lutas entre grupos, fanatismos ideológicos ou religiosos, está carregada de projeções, desembocando em alguns casos até em situações de guerra. Marie-Louise von Franz (psiquiatra junguiana)
Por Marcello Escorel em 11/09/2021 às 06h
Tenho assistido com certa frequência a TV Senado para acompanhar ao vivo a CPI da Covid. Brinco com meus amigos que o programa é o meu Big Brother Brasil e são muitas as vezes em que me pego revoltado com o descaso e o negacionismo que pautaram o combate a pandemia orquestrado pelo governo federal. Poderíamos estar vacinando a população desde meados de dezembro do ano passado e não teríamos que conviver com o luto de tantas famílias, e certamente a tão “sagrada” economia já poderia estar dando sinais de melhora apesar da desastrosa condução do ministro da pasta.
Tudo isto é muito grave, mas torna-se ainda mais horrendo quando constatamos que lado a lado ao vírus da covid alastra-se outro vírus não menos perigoso. Ele não tem um nome específico, mas seus sintomas são bem conhecidos: o ódio, o fanatismo, a falta total de bom senso e incapacidade para o diálogo. Não há vacina para este vírus que nos imunize com uma picada no braço ou a toma de uma gotinha. O único remédio é a tomada de consciência de que ele nos ataca de dentro para fora com um mecanismo de infecção que chamamos de projeção, ao qual já aludimos diversas vezes neste espaço.
Quando um conteúdo inconsciente está ativo e não consegue ultrapassar o limiar da consciência automaticamente ele se projeta num objeto exterior assim como uma roupa que é pendurada num cabide.
As projeções podem ser positivas ou negativas. Qualidades nossas que são consideradas boas, mas que não reconhecemos como pertencentes a nós, podem se enganchar numa pessoa conhecida, e qualidades ruins que possuímos também relegadas a inconsciência, podem ser carimbadas em outrem.
A epidemia emocional que vivemos no Brasil nesses tempos conturbados conjuga os dois tipos de “infecção”. Uma minoria do povo, cerca de uns 23 ou 24 por cento do total, projeta no líder do poder executivo o arquétipo do salvador, chamando-o de mito e rejeitando toda e qualquer argumentação lógica que possa trazer alguma nódoa a sua figura. Ao mesmo tempo, projetam negativamente a sombra pessoal e coletiva sobre todas as minorias e toda ampla frente de opositores desse desgoverno.
Essa mistura explosiva não é nova. Vimo-la surgir em momentos de crise em diversas épocas na história. Podemos citar a perseguição dos primeiros cristãos na Roma Imperial; o extermínio de Judeus na Idade Média e durante a Segunda Grande Guerra; o massacre de integrantes de seitas consideradas heréticas pela Igreja; o horror da Inquisição e do Santo Ofício, produtor do maior feminicídio da história; a escravização e o genocídio de negros, e a ascensão do fascismo na Alemanha e na Itália. Em todos estes exemplos, verificamos a mesma evolução do “vírus” contaminando pessoas de todas as classes e idades que antes da infecção levavam vidas “normais”. De uma hora para outra, todas passam a desenvolver os mesmos sintomas a que já nos referimos, agravados por sistemas “racionais” e pseudo-científicos que fundamentam a crença de que doentes são os outros. São sistemas delirantes como a teoria da supremacia da raça ariana onde vários “especialistas” provavam a veracidade de suas teses por meio de medições do crânio, e onde “historiadores” sustentavam a participação deletéria de raças, como a semítica e a negra, nas desgraças e crises da aventura humana. Durante a longa caça às bruxas, na Idade Média, foram escritos, por autoridades da Igreja, tratados e manuais que descreviam como reconhecer uma feiticeira por meio de sinais na pele, malformações fisiológicas e um sem número de sandices. Quem se der ao trabalho de pesquisar, é só ler uma das edições brasileiras do “Martelo das Feiticeiras” para constatar a que ponto a cegueira se estabelece quando as projeções estão atuando. Voltando aos dias de hoje assistimos a esse mecanismo quando a extrema direita no Brasil difundiu informações sobre a existência de um kit gay e de mamadeiras, desculpem a expressão, de piroca.
Citando Jung: “É surpreendente a transformação que se opera no caráter de um indivíduo quando nele irrompem as forças coletivas. Um homem afável pode tornar-se um louco varrido ou uma fera selvagem. … Por certo, é bom pregar a sã razão e o bom senso, mas o que deve fazer alguém quando o seu auditório é constituído pelos moradores de um manicômio ou pela massa fanática? Entre os dois casos não há grande diferença pois o alienado, assim como a turba, é movido por forças impessoais que o subjugam. … Nunca podemos estar seguros de que uma ideia nova não se apodere de nós mesmos ou de nosso vizinho. Tanto a história contemporânea, como a antiga nos ensina serem tais ideias, muitas vezes, tão estranhas e extravagantes que a razão dificilmente as aceita. O fascínio que em geral acompanha essas ideias, provoca uma obsessão fantástica que, por seu turno, faz com que todos os dissidentes – não importa se bem intencionados ou sensatos – sejam queimados vivos, decapitados ou liquidados em massa por metralhadoras modernas.”
Para a covid temos um número amplo de vacinas mas para o contágio do vírus psíquico só contamos com uma forma de imunização que é a de entrarmos corajosamente e com uma disposição religiosa em nosso mundo interior, admitindo a máxima de que o único indivíduo que podemos mudar somos nós mesmos. A transformação de cada indivíduo é o melhor caminho para nos vacinarmos contra o fanatismo e a intolerância, avessos a qualquer tentativa racional de convencimento. É através do alargamento de nossa consciência que podemos fazer brotar a utopia de um mundo livre do ódio, que abolirá de uma vez por todas as armas, os exércitos e todo e qualquer tipo de conflito armado.
Marcello Escorel é ator e diretor de teatro há mais de 40 anos. Paralelamente a sua carreira artística estuda de maneira autodidata, desde a adolescência, mitologia, história das religiões e a psicologia analítica de Carl Gustav Jung.