A escravização de negros africanos e indígenas brasileiros deixou profundas marcas na sociedade; após 300 anos de escravidão, o racismo ainda é uma ferida aberta no Brasil
Thaynara Santos
No Mês da Consciência Negra, o Jornal Maré de Notícias convidou Mônica Lima e Souza, coordenadora do LEÁFRICA (Laboratório de Estudos Africanos) e professora do Instituto de História da UFRJ para uma entrevista. Mônica ministrou o primeiro curso sobre História da África em 1992, na Universidade Federal do Maranhão, para graduandos no Brasil. Paralelamente à sua carreira acadêmica, produziu textos para a Educação Básica e para professores sobre o ensino de História da África e considera a sala de aula uma importante trincheira na luta antirracista.
Em 2009, publicou o livro “Heranças Africanas no Brasil”, na coleção Cadernos CEAP, no qual relaciona a História da África à história dos africanos e seus descendentes no Brasil. A professora tem diversas publicações em revistas acadêmicas sobre História da África. Recentemente, escreveu sobre o Cais do Valongo, conhecida como Pequena África, na Zona Portuária do Rio de Janeiro, como sítio histórico de memória sensível.
Maré de Notícias: Qual o papel da representatividade na discussão sobre racismo estrutural? Atualmente, percebemos que uma das principais discussões entre os Movimentos Negros no Brasil é a representatividade nas telenovelas, propagandas, etc.
Mônica Lima: O papel da representatividade é fundamental, porque está diretamente relacionado à construção de uma autoimagem. Como fui professora da Educação Básica por muitos anos, acompanhei e sofri com as imagens estereotipadas, distorcidas e invisibilizadas quando havia referência, nos materiais didáticos, à população negra – na África, no Brasil, nas Américas. Isso vem mudando, sem dúvida, mas está longe de ser suficiente. É necessário utilizar novas referências para a escrita desses materiais, trazer o que vem sendo produzido no campo da História, da Literatura, da Arte. Certamente, a representatividade na mídia importa – e muito. Mas se as crianças e adolescentes não tiverem visto e conhecido, na sua formação escolar, personagens e histórias negras, terão menos instrumentos para ler criticamente a mídia. E, portanto, poderão de forma muito mais consciente lutar por representatividade – e uma representatividade que não se resume a estar lá, mas a estar de determinada maneira que questione o estereótipo.
MN: Qual a sua percepção sobre os impactos da política de cotas raciais nas universidades públicas?
ML: É uma revolução em marcha. Não tenho dúvidas. A presença muito mais expressiva de estudantes negros e negras trouxe muitas coisas positivas: o surgimento de diversos coletivos negros, a demanda por mais disciplinas e projetos que tratem sobre a questão racial, grupos de estudos reunindo esses estudantes, demandas por mais professores negros e por referências bibliográficas negras e africanas nos cursos – tudo isso foi/está sendo um vento forte benfazejo que varreu/varre as universidades públicas. Há que se fazer muito mais, mas esse passo foi importantíssimo.
MN: Democracia racial no Brasil: falácia ou verdade?
ML: Falácia total. O Brasil tem grande parte de sua sociedade atrapalhada pelo racismo e isso causa um sofrimento enorme. Causa morte e dor. A desigualdade racial nos índices (assassinatos, violência doméstica) é assustadora, bem como na diferença salarial entre negras/negros e brancas/brancos com a mesma escolaridade e desempenhando a mesma função. Temos heranças da escravidão, mas temos um discurso e uma série de políticas racistas no pós-abolição, que desnudam qualquer possibilidade de acreditar que nesse País o racismo é “cordial”. Temos um racismo horroroso, violento e entranhado. E ao negar esse racismo, só o fortalecemos.O pior caminho é o do silêncio.
MN: O que diferencia o racismo estrutural do racismo institucional, já que os dois são derivados do mesmo preconceito?
ML: O racismo estrutural é aquele que está na base, na estrutura que sustenta a sociedade. É o racismo que se percebe por todos os lados, tanto no dia a dia como na observação mais atenta sobre os dados e as estatísticas – que refletem esse racismo estrutural – e no contato com as políticas de Estado, que tiram e/ou reduzem oportunidades de ascensão para negras e negros, excluem e exterminam. É um racismo que vem de muito tempo, e que muda com muita dificuldade. Para mudar o racismo estrutural, é necessária toda uma mudança de mentalidade e de ações concretas para romper com ele. O racismo institucional tem como base o racismo estrutural, mas é aquele que opera e realiza dentro de instituições – como, por exemplo, a escola, ou mesmo uma empresa. É o racismo que segue as regras da instituição, mas essas regras não são questionadas como produtoras de desigualdades sociais e raciais. É o racismo que pode parecer “não existir” porque as instituições, em geral, se pretendem neutras – mas não são. É um racismo que dificulta a presença, a ascensão, o reconhecimento do talento, da inteligência, da criatividade de negras e negros nas diferentes instituições. É importante relacionar o combate ao racismo com políticas de reparação. Temos de falar de reparação. E já!
Todos contra a intolerância racial
Não é necessário ser negro para discutir sobre o racismo. Mesmo o protagonismo sendo de pessoas negras que passam diariamente pelo preconceito racial, pessoas brancas, indígenas, asiáticas, entre outras, podem ajudar no combate deste mal. Segundo o dicionário, “racismo é a denominação da discriminação e do preconceito (direta ou indiretamente) contra indivíduos ou grupos por causa de sua etnia ou cor.” O preconceito racial pode manifestar-se em violência física ou verbal e também ser entendido como a crença de que uma raça/cor/etnia é superior à outra.
Uma ação preconceituosa somente é considerada racista quando a vítima está dentro de uma estrutura de dominação contra sua raça/etnia/cor. No Brasil, a Lei n° 7716, de 1989, do Código Penal brasileiro, prevê punições às pessoas que tiverem atitudes racistas, como discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, e crimes de ódio e intolerância racial.
Racismo estrutural
O preconceito racial já está tão naturalizado que nem é possível perceber atitudes, hábitos e palavras racistas que existem no dia a dia. Ninguém questiona, por exemplo, de as novelas, uma paixão nacional, terem poucos atores negros. Como protagonistas, então, pode se contar nos dedos… Outro exemplo são os termos e expressões com origem racista que estão presentes no nosso vocabulário cotidiano. Pequenas mudanças de hábito podem ajudar a “desnaturalizar” o preconceito. A seguir, algumas expressões racistas naturalizadas na sociedade brasileira: