Cartilha ajuda a entender os desafios na busca por moradia digna
Julia Bruce e Jéssica Pires
Maré de Notícias #152 – setembro de 2023
O eixo Direitos Urbanos e Socioambientais da Redes da Maré lançou uma cartilha sobre o Direito à Moradia na Maré. A publicação apresenta um histórico sobre o direito à moradia no conjunto de favelas, com informações sobre esse direito, bem como, quando esse é violado e é preciso reivindicá-lo .
No Brasil, ter um lugar digno, seguro e adequado para viver é um direito social, inscrito na Constituição Federal de 1988. Esse mesmo direito também é afirmado pelo Estatuto da Cidade, na Lei Federal nº 10.257/2001. Nas favelas e periferias, porém, os desafios para ter e manter um teto sob a cabeça são cotidianos.
Saber é poder
A cartilha Direito à Moradia na Maré foi elaborada a partir de uma formação oferecida a jovens universitários moradores de algumas favelas da Maré. O conteúdo trabalhado abrangeu o direito à cidade e à moradia, além da discussão sobre o processo histórico das ocupações da região. Lançada no Galpão RITMA — Rede de Inovação Tecnológica da Maré no último dia 10 de agosto, foi então apresentada aos moradores da Favela da Galinha e do Tijolinho (Nova Holanda).
A coordenadora do eixo Direitos Urbanos Socioambientais da Redes da Maré, Shyrlei Rosendo, explica: “muitos dos nossos temas vêm da demanda de moradores, como o do direito à moradia, que é discutido pelo Fórum das Associações de Moradores, desde a sua criação, em 2009. A regularização fundiária e os processos de intervenções também marcaram a história da construção do que é o Conjunto de Favelas da Maré hoje”.
Shyrlei acrescenta ainda: “No decorrer do nosso trabalho, já vimos muitos moradores chegarem à Redes da Maré avisando que suas casas estavam a ponto de desabar. Vimos que precisávamos produzir conhecimento sobre o direito à moradia, construir um processo coletivo e entender como o Estado vai possibilitar isso”.
Direito à cidade
A formação sobre o Direito à Moradia nas favelas da Maré aconteceu a no último mês de abril. Além de refletirem sobre determinados temas relacionados ao direito à moradia, os jovens participaram de debates sobre filmes e outras linguagens artísticas como a fotografia e literatura d a respeito do processo de urbanização nas favelas da Maré.
Foram identificados dados para um estudo que mostrou que o Índice de Desenvolvimento Humano e Municipal (IDHM) da Maré é de 0,722. O da Gávea, na zona sul do Rio de Janeiro, é de 0,970. Outros dados comparativos coletados: o acesso à moradia na Maré é de 79,19% e na Gávea, de 95,84%. Em relação à água e saneamento básico, na Maré é de 93,1% e na Gávea, 98,93%. A coleta de lixo na Maré é de 87,18% e na Gávea de 100%.
O estudante de Serviço Social Arthur Beserra, de 20 anos, é um dos jovens que fez parte do processo de formação sobre direito à moradia. Ele nos explica: e “a produção da cartilha sobre direito à moradia na Maré é anticapital porque o que a gente produz aqui não é o que geralmente é produzido sobre habitação. Nós que estamos na favela, também somos parte da cidade e queremos efetivar nossos direitos. Aqui, o policial invade nossa casa como quer, a água também invade com as fortes chuvas. Temos problemas com infiltrações, entre tantas outras violações em que o poder público precisa estar presente.”
Arthur completa: “A produção desta cartilha me deixa muito feliz porque estou conseguindo reverter algo para a nossa comunidade e transmitir conhecimentos para familiares e amigos”.
Surpresa
A coordenadora do projeto Direito à Moradia na Maré, Fefa Frias, acompanhou a formação dos jovens. Ela nos fala: “O direito à moradia não é só à casa, é também à infraestrutura, questões sobre assentamentos, o direito a ter acesso a uma rede de esgoto de qualidade e que, realmente, funcione, a transporte, a energia elétrica e ao acesso a serviços públicos, como saúde, educação e lazer”.
O mobilizador e pesquisador do eixo Direitos Urbanos e Socioambientais, Maurício Dutra, complementa: “Os moradores ficaram surpresos com a temática do direito à moradia. Eles tomaram consciência de direitos que, até então, pensavam que eram favores. Elogiaram muito a objetividade do conteúdo e a clareza da linguagem da cartilha”. Mauricio, compartilhou com Fefa Frias a coordenação do projeto Direito à Moradia durante o processo de mobilização e entrega das cartilhas aos moradores.
Quem pensa a cidade?
No último dia 10 de agosto, o governador Cláudio Castro anunciou o início de obras em um trecho de 30 quilômetros da Linha Vermelha, que desde o início deste ano é administrado pelo governo do estado. Dentre as ditas melhorias está um muro, com 30 centímetros de espessura, a ser construído apenas em algumas áreas da via expressa.
Durante o anúncio da obra, o governador declarou que a nova estrutura serviria para garantir a segurança na via, uma vez que poderia proteger os veículos passantes de balas perdidas vindas de regiões como as favelas da Maré.
As obras incluem ainda recapeamento da pista, iluminação LED nos canteiros centrais e laterais, e a instalação de novas câmeras de monitoramento. A obra faz parte de um projeto da Secretaria Estadual de Transporte e Mobilidade Urbana, com orçamento de R$ 70 milhões.
Política demanda diálogo
Em 2016, ano em que a cidade do Rio de Janeiro recebeu os Jogos Olímpicos, uma barreira de acrílico foi instalada na Linha Vermelha. Na época, moradores da região e especialistas em urbanismo se dividiram em relação a construção do muro.
O Maré de Notícias não identificou processos de consulta ou participação popular no projeto agora anunciado, ou a publicação dos planos para a obra nos canais oficiais do governo do Estado, com detalhamento orçamentário e possíveis estudos sobre seu impacto para as populações que vivem às margens da Linha Vermelha.
Logo após o pronunciamento do governador, o projeto começou a receber críticas, tanto em relação à eficiência na garantia da segurança, mas também, sobre o fato de ser uma medida que invisibilizará as favelas existentes no trecho. Mais uma vez, identificamos o quanto as políticas públicas no campo da segurança pública não reconhecem o direito das populações de favelas e, nesse caso, estamos falando de uma região habitada por 140 mil pessoas.
“A construção de um muro como esse caracteriza uma perspectiva histórica de segregar as favelas do restante da cidade”, destacou Pâmela Carvalho, moradora do Parque União e coordenadora do Eixo Arte e Cultura, Memórias e Identidades da Redes da Maré, em entrevista ao portal G1.
O pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Ignácio Cano, acredita que a obra é demonstração da inaptidão estatal para desenvolver uma política de segurança pública eficiente.
“É como um atestado de incapacidade do governo do estado de não conseguir controlar as ações de segurança necessárias. E o muro vem, então, dizer: ‘Olha, como não consigo controlar, vou tentar pelo menos proteger os motoristas que transitam’”, disse ele ao G1.
É fundamental a reflexão sobre de que maneiras o Estado elabora e aplica as políticas e estruturas públicas em determinados espaços na cidade. É preciso pensar e propor o direito à cidade e a moradia de forma coletiva, democrática e considerando as desigualdades sociais do Rio de Janeiro.
Você pode retirar gratuitamente sua cartilha Direito à Moradia na Maré na secretaria da Redes da Maré ou ainda baixar uma versão digital em https://bit.ly/3sF2uuz.