A política da (in)segurança pública mata mais do que protege

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Operações policiais não são sinônimos de segurança revela Boletim de Segurança Pública da Redes da Maré

Por Daniele Moura em 23/02/2021 às 9h30, editado por Andressa Cabral

“Ela estava feliz da vida. Não só ela, como eu e a família toda. Meu netinho ia morar comigo”. A ansiedade pela chegada do bebê era enorme na família de Maiara Oliveira da Silva, como relatou Alberon Sales da Silva, pai da jovem, ao jornal O Globo em 29 de outubro do ano passado. Os parentes estavam se organizando para custear o exame que revelaria o sexo do bebê, mas este sonho foi interrompido. Maiara, de 20 anos, moça alegre e comunicativa, perdeu a criança que esperava durante uma operação policial na Maré. Como o dela, inúmeros outros sonhos são interrompidos pelas ações e operações equivocadas nas periferias e favelas brasileiras.

Desde 2017, a partir de monitoramento dos confrontos armados no território, houve 78 mortes decorrentes das 112 operações policiais que aconteceram na Maré. São 78 vidas perdidas por uma lógica bélica da segurança pública que não tem trazido resultados na diminuição de crimes, segundo a 5a edição do Boletim de Segurança Direito à Segurança Pública da Maré, levantamento feito pelo projeto De Olho na Maré, da Redes da Maré. 

Essa tese também é defendida pelo sociólogo e cientista social Daniel Hirata que, juntamente com a pesquisadora Carolina Christoph Grillo, lançou uma pesquisa inédita sobre o número de operações policiais realizadas no estado entre 1989 e 2018 – uma estatística que não é produzida pelos órgãos oficiais. Segundo Hirata, que é professor adjunto do Departamento de Sociologia e Metodologia em Ciências Sociais (GSO-UFF), do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS/UFF) e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD-UFF) da Universidade Federal Fluminense, as operações policiais não impactam na diminuição dos crimes contra a vida nem contra o patrimônio.

“A segurança pública deveria ser um serviço público de garantia de vida oferecido pelo Estado, como educação e saúde. Acontece que, por uma série de razões relacionadas a poderosos grupos políticos e econômicos do nosso estado, isso tem sido deturpado em prol do interesse dessa minoria que, por exemplo, se sente afetada pelos roubos de cargas. Esse tipo de operação, mesmo que para atuação patrimonial, não é eficiente”. 

Daniel Hirata, cientista social

Segundo ele, mesmo existindo dados específicos de onde e quando acontecem os roubos de cargas, os policiais são guiados por outra lógica. “Eles atuam fazendo pressão sobre os supostos criminosos: não agem onde os crimes acontecem, mas onde eles acham que os bandidos moram, que seria supostamente nas favelas. Com isso, a ineficiência das operações é muito grande porque não está assentada em dados e evidências. Esse é um grande problema, que causa alta letalidade e pouquíssimo efeito no combate ao roubo de cargas, por exemplo.”

Dados da assessoria de comunicação das polícias civil e militar ajudam a confirmar a tese do pesquisador e as evidências do levantamento da Redes da Maré. Das 25 operações policiais que ocorreram na região em 2019, em 32% houve apreensão de armas e/ou drogas. Já a partir de junho de 2020, depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) determinar que as operações somente poderiam ocorrer em casos de extrema excepcionalidade e sempre monitoradas pelo Ministério Público, em 43% das 16 operações ocorridas na Maré houve apreensão de armas e em 36%, de drogas. Ou seja, em 2020, mesmo com número menor de operações, mais material foi apreendido, o que mostra que a eficácia (e a eficiência) de uma política de segurança pública não está no número de operações feitas.

  • 36% das 25 operações resultaram em prisões
  • 32% apreenderam armas e/ou drogas
  • 8% recuperaram/apreenderam veículos 
  • Nenhuma carga roubada foi recuperada

Em 2020:

  • 36% das 16 operações resultaram em prisões
  • 43% apreenderam armas 
  • 36% apreenderam  drogas
  • 14% recuperaram/apreenderam veículos 
  • 14% recuperaram carga roubada

Em contrapartida, essas ações da polícia, que deveriam proteger a população local, deixaram um rastro de abusos de autoridade e violações de direitos contra pessoas que não têm acesso a direitos básicos para enfrentar as injustiças que sofrem. Na Maré, assim como nas periferias brasileiras, não existem investigações, perícias e averiguações não são realizadas; oficiais de justiça não cumprem mandados e medidas cautelares não são respeitadas. Na cidade do Rio de Janeiro, 22,3% de seus habitantes moram em favelas, vivem nesse cenário de maior violência e convivem com o crescimento desse modelo bélico, militarizado e ineficiente de segurança pública. 

“Eventualmente, pode haver a necessidade de uma operação policial. O problema está numa política de segurança pública baseada apenas nelas. Elas constam nos manuais das polícias como algo excepcional, mas acabaram virando rotina. Esse é o grande problema: não temos uma polícia investigativa que busque solucionar os crimes. Isso termina por criar efeitos deletérios sobre a vida dos moradores de favelas.”

Daniel Hirata, cientista político
6 operações policiais
Redução de 59% em relação ao ano de 2019, decorrente principalmente da determinação do STF em liminar à ADPF 635.
26 feridos por arma de fogo
17 pessoas foram feridas em operações policiais e 9 pessoas em confrontos entre grupos armados.
19 mortes por arma de fogo
Redução de 61% do total de mortes na Maré em relação a 2019.

Operações na pandemia

A pandemia afetou drasticamente a população de favela e de periferias, escancarando as desigualdades históricas enraizadas nesses territórios. Desde o início das medidas de restrição, moradores e instituições da Maré denunciam o descaso do poder público frente às dificuldades do acesso a direitos indispensáveis para o controle da pandemia, como a falta de equipamentos nos serviços de saúde; precariedade no fornecimento de água; ineficiência da política de assistência social para garantir o direito ao isolamento; falta de uma política pública de segurança alimentar durante a emergência sanitária e ações da política de segurança pública, que contrariam as orientações de prevenção ao vírus.

Entre março e abril, período no qual o município do Rio de Janeiro e particularmente a Maré chegaram próximo ao primeiro pico de contaminação pela covid-19, foram realizadas cinco operações policiais nas favelas da região, frequência superior ao mesmo período em 2018 e 2019.

ADPF das Favelas

 Foi neste contexto pandêmico que medidas judiciais romperam a lógica das operações policiais como solução para o problema da segurança pública no Rio. Assim como aconteceu em 2017 – com a Ação Civil Pública (ACP) da Maré, que determinou medidas protetivas nas ações policiais –, em junho de 2020 outra decisão levou à diminuição dos impactos negativos da política de confronto. O ministro do STF Edson Fachin determinou a suspensão da realização de operações policiais em favelas do Rio de Janeiro durante o período de pandemia, salvo em casos excepcionais devidamente relatados e acompanhados pelo Ministério Público.

Para que ocorram, devem ser adotadas medidas que não exponham a população a risco ainda maior nem impeçam a prestação de serviços públicos sanitários e o desempenho de atividades de ajuda humanitária realizadas por moradores e organizações que atuam nesses territórios. Essa decisão foi tomada liminarmente, no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceitos Fundamentais (ADPF) 635, chamada de “ADPF das Favelas” e protocolada em novembro de 2019. 

Essas vitórias são frutos da mobilização dos moradores de favelas, das organizações e dos movimentos sociais que atuam na Maré. Shirley Rosendo é coordenadora de mobilização do Eixo de Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré, mora no território desde que nasceu e sabe da importância dessa luta: “Temos que celebrar e continuar insistindo na ACP e na ADPF, pois são esses instrumentos jurídicos, junto à força dos moradores, que podem vir a tornar possível e real o pleno exercício de direitos, seja ele segurança ou qualquer outro.”

Os dados de 2020 confirmam os impactos favoráveis da decisão do STF na vida da população mareense. Em 2019, foram registradas 39 operações policiais na Maré, um aumento de 144% em relação a 2018. Porém, com a suspensão das operações durante a pandemia, houve uma redução de 59% neste número, passando de 39 para 16 em 2020. Ainda que tenham sido registradas cinco mortes e 17 pessoas feridas por arma de fogo, houve, segundo o Boletim, uma diminuição de 85% no número de mortes em operações policiais em relação a 2019. Um saldo de 29 vidas mareenses salvas.

Em 2020:

  • 16 operações policiais
  • 5 mortes
  • 17 pessoas feridas
  • 8 dias sem atendimento nas unidades de saúde
  • 3 dias sem aula

Em 2019:

  • 39 operações policiais na Maré
  • 34 mortes
  • 45 pessoas feridas
  • 25 dias sem atendimento nas unidades de saúde
  • 24 dias sem aula

Impactos na Educação e Saúde

Em 2020, as escolas suspenderam as atividades por três dias no primeiro bimestre do ano letivo por conta de operações policiais (antes das medidas de restrições impostas pela pandemia e da substituição das aulas presenciais por aquelas online). 

3 dias de atividades suspensas nas escolas em decorrência de operações policiais, enquanto as aulas ainda eram presenciais. 8 dias de atividades suspensas nas unidades de saúde, em um contexto de pandemia

Das 16 operações em 2020, cinco aconteceram durante a pandemia. Essas ações, além de inviabilizar o isolamento dos moradores, fez com que os agentes do Estado descumprissem as orientações para evitar a disseminação do vírus, provocando aglomerações e invadindo residências sem o uso de equipamentos de proteção mínima, como máscaras. Além disso, foram cinco dias de interrupção da distribuição de cestas de alimentação e kits de higiene pela Campanha Maré Diz NÃO ao Coronavírus, da Redes da Maré; além disso, em apenas um dia, 110 testes deixaram de ser feitos no Centro de Testagem da Maré.

Outro impacto grave é a suspensão do atendimento médico nas unidades de saúde. De 2017 a 2020, a Redes da Maré registrou 79 dias sem atividades nas sete unidades de saúde por conta de operações policiais na Maré. Em 2019, elas ficaram fechadas por 25 dias, o que resultou em 15 mil atendimentos que deixaram de ser realizados. Em 2020, com a diminuição das operações, as unidades de saúde não funcionaram por oito dias – uma redução de 68%. Comparando-se os dados, pode-se estimar que as unidades de saúde da Maré realizaram 10.200 atendimentos a mais apenas por não terem sido fechadas durante as operações policiais. Em meio à crise mundial desencadeada pela covid-19, esse dado tem extrema importância.

Violações identificadas

 Em 2020, apesar da redução do número de mortes, o perfil das vítimas não mudou em relação a 2019: 100% eram jovens identificados como pretos ou pardos. Das cinco mortes registradas em 2020, todas foram de homens, entre 20 e 24 anos. 

O projeto também registrou 35 invasões a domicílio, 12 casos de danos ao patrimônio, 12 de violência verbal, 11 de ameaça, oito de violência psicológica, seis de violência física, três de assédio sexual, seis subtrações de pertences, duas denúncias de cárcere privado e um caso de tortura. Um total de 96 casos de violações que vitimaram diretamente 48 moradores da Maré em 16 dias de operação policial.  É importante frisar que esses números são registrados pelo “De Olho na Maré!”.

MÊSOPERAÇÕES POLICIAISPESSOAS MORTASPESSOAS FERIDASDIAS DE AULAS SUSPENSAS DIAS DE ATIVIDADES SUSPENSAS NAS UNIDADES DE SAÚDE
Janeiro21201
Fevereiro33211
Março31522
Abril20001
Maio10000
Junho10301
Julho10000
Agosto00000
Setembro00000
Outubro10201
Novembro10300
Dezembro10001
Total1651738

Acesse ao boletim na íntegra aqui.

Para mais informações sobre os dados a Redes da Maré fará o lançamento com uma live nos canais do Youtube e do Facebook na próxima quinta dia 25/02 às 19h.

A Redes da Maré fará uma live para a divulgação dos dados no dia 25/02 às 19h no Youtube e no Facebook da Redes da Maré

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