“Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Meu Reino não é deste mundo.” Jesus de Nazaré
Por Marcello Escorel em 10/07/21 às 14h
Os opositores de Jesus, tanto judeus quanto romanos, contavam que com sua execução seus seguidores se dispersariam e sua “seita” também morreria; mas, tempos depois, passado o trauma de presenciarem o suplício infamante do Nazareno no Calvário, seus discípulos mais próximos começaram a disseminar oralmente os ensinamentos do Mestre em pequenas comunidades de fiéis, cada uma com sua interpretação específica dos objetivos e significado da missão de Jesus.
Havia aqueles que acreditavam que Jesus, filho de José, era o Messias e que sua ressurreição corroborava as profecias de Isaías que vaticinavam a libertação de Israel e a ativação de sua vocação de nação sacerdotal cujo papel seria converter o mundo conhecido à adoração do Deus de Abraão. Esperavam a volta do Messias no final dos tempos que para os crentes era fato consumado e iminente.
Havia ainda outros, convertidos por Paulo, majoritariamente gentios, que professavam a crença de que Jesus era filho de Deus, concebido pelo Espírito Santo em Maria, sua mãe virginal, para abolir a Lei de Moisés e inaugurar uma nova dispensação fundada na fé e na caridade.
E por fim aqueles que, imbuídos do desejo de entender o fundo comum de todas as religiões, buscavam estimular o sincretismo do nascente cristianismo com as diversas correntes filosóficas e demais cultos da época. Esses eram chamados de “gnósticos”.
Sendo assim, vários “evangelhos” foram escritos levando em conta que as pessoas têm diferentes capacidades, temperamentos e necessidades espirituais distintas. Pluralismo que a meu ver é bem sadio e estimulante.
Este panorama de diversidade continuou por muito tempo com cada corrente ou seita reivindicando como verdade sua própria concepção interpretativa. Conviviam pacificamente e no máximo repudiavam-se entre si com admoestações para não se misturarem uns aos outros.
Até que no declínio do Império Romano uma batalha entre dois postulantes ao trono selou o destino do cristianismo produzindo o que chamei de triunfante derrota. A batalha da ponte Mílvia entre os exércitos de Magêncio e Constantino.
Eusébio, bispo de Cesareia, uma raposa política, conta a seguinte duvidosa lenda: segundo seu biografado, Constantino, durante os preparativos para o confronto final uma cruz brilhante teria sido avistada no céu juntamente com as palavras “In Hoc Signo Vince” (Com este signo vencerás); e num sonho, na noite seguinte, o próprio Jesus aparecerá incitando-o a adotar o símbolo da cruz como seu estandarte pessoal.
Pessoalmente acho muito difícil que o Redentor tenha visitado o cruel Constantino ainda que em sonhos. Primeiro porque o próprio Mestre afirmou que “seu Reino não era deste mundo” e, por fim, pela lei espiritual das afinidades seria praticamente impossível que o “Príncipe da Paz” favorecesse alguém que pouco tempo depois assassinaria a própria esposa e o filho.
A meu ver neste relato está o dedo senão a mão inteira, ou as duas, do bispo Eusébio. Foi a primeira vez que conspurcaram o símbolo da cruz cristã usando-a numa aventura militar. (As Cruzadas ainda estavam num futuro longínquo.) Mas o resultado histórico, independente da realidade da lenda, foi a vitória de Constantino, doravante chamado o Grande.
Uma das primeiras ações do novo imperador foi imiscuir-se nas questões religiosas (Eusébio mais uma vez orientando das sombras) condenando duas concepções cristãs como heresias. A primeira foi a dos donatistas que acreditavam que os sacramentos da Igreja só teriam eficácia dependendo do estado espiritual do sacerdote. Trocando em miúdos, se um padre fosse um crápula os sacramentos seriam inócuos. Constantino, condenando os donatistas, abriu a porteira para os maus sacerdotes e numa expressão muito moderna “deixou passar a boiada”. A segunda crença condenada como heresia foi a dos seguidores de Ário que negavam a divindade de Jesus. Mas Constantino foi ainda além. Em 325 convocou o Concílio de Nicéia que, pasmem, ele mesmo presidiu. Após seu discurso inicial sobre a necessidade de unidade, os mais de trezentos bispos presentes colocaram uma pá de cal sobre o pluralismo com a confecção do “Credo” que até hoje faz parte da liturgia da missa católica.
Diz Joseph Campbell em seu livro “As Máscaras de Deus – Mitologia Ocidental”: “A religião de Cristo tornou-se com Constantino a serva da política e a autoridade para a manutenção de uma certa ordem social … a religião do Redentor sofreu durante toda a história a degradação de sua identificação com a política.”
Com o suporte de César o cristianismo torna-se por decreto um só e tem o mesmo status concedido às religiões pagãs do Império. Mas a pegada de autoritarismo não para com a morte de Constantino. Meio século mais tarde, Teodósio, o novo imperador, decreta que a religião da cruz é a única religião permitida, com penas que vão da morte por execução até o confisco de bens e propriedades para todo aquele que ousar confessar outra fé.
Em todo Império fanáticos religiosos atacam, com a complacência do poder central, os templos da Antiguidade, destruindo obras de arte, massacrando fiéis e sacerdotes, numa onda de terror comparável à perseguição sistemática de judeus na Idade Média. Estava plantada a semente para a criação, tempos mais tarde, do Tribunal do Santo Ofício, a famigerada Inquisição, responsável por um genocídio sem precedentes em nome da salvação das almas.
Citando o historiador Edward Gibbon: “A ruína da religião pagã é descrita pelos sofistas (filósofos) como um terrível e espantoso prodígio, que cobriu de trevas a terra e restaurou o antigo domínio do caos e da noite. Eles relatam que os templos foram transformados em sepulcros e que os lugares sagrados … foram aviltantemente profanados pelas relíquias de mártires cristãos. ‘Os monges’ (uma raça de animais imundos, a quem o sofista Eunápio recusa-se a chamar de homens) ‘são os autores do novo culto que, em lugar das divindades concebidas pelo entendimento, puseram … cabeças, salgadas e conservadas em salmoura, de infames malfeitores que por sua infinidade de crimes sofreram uma morte justa e ignominiosa…’
“A experiência satisfatória (Gibbon conclui) de que as relíquias dos santos eram mais valiosas do que o ouro e as pedras preciosas, estimulou o clérigo a multiplicar os tesouros da Igreja. Sem muita consideração pela verdade … eles inventaram nomes para os esqueletos e ações para os nomes. … Ao inventário honroso de mártires genuínos e primitivos, eles acrescentaram miríades de heróis imaginários que jamais tinham existido, a não ser na fantasia dos astutos ou crédulos. E há razão de se suspeitar que Tour não foi a única diocese onde os ossos de um malfeitor foram adorados em lugar dos ossos de um santo.”
Essa sombra cristã ainda recai poderosamente sobre nós até hoje. A reconhecemos no fanático cristão que invade igrejas para destruir imagens e depreda as casas de santo das religiões afro-brasileiras. Não são filhos de Jesus, são filhos de Constantino e Teodósio e, como seus pais, infamam a memória daquele que em vida foi todo amor. Rezemos para que, no futuro, a luz de Jesus possa afastar de nós, definitivamente, as trevas da intolerância.
Marcello Escorel é ator e diretor de teatro há mais de 40 anos. Paralelamente a sua carreira artística estuda de maneira autodidata, desde a adolescência, mitologia, história das religiões e a psicologia analítica de Carl Gustav Jung