A vida após o cárcere

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Após a condenação da justiça, egressos do sistema lidam com a condenação social 

Por Samara Oliveira

Odir dos Santos Conceição, Erivelton Melchiades e Cristiano Silva de Oliveira. Três nomes distintos, três pessoas que não se conhecem e três histórias atravessadas pelo mesmo sistema de um país com a terceira maior população carcerária do mundo, como aponta o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen).

O Brasil é o país em que os grupos de extrema direita mais crescem no mundo segundo pesquisa feita pela ONG Anti-Defamation League (ADL), os discursos “bandido bom é bandido morto”, “tá com pena leva pra casa” e até mesmo “a polícia vai mirar na cabecinha e… fogo”, dito pelo então governador do Rio Wilson Witzel, são direcionados a corpos negros, pobres e periféricos. O ex-governador que perdeu seu cargo ao ser impeachmado por corrupção na área da saúde em plena pandemia da covid-19 não endossa o mesmo discurso em casos como o dele. 

Contrariando as expectativas da sociedade, os três, de origens periféricas, se reconstruíram. 

Odir dos Santos Conceição

Odir dos Santos Conceição, hoje com 55 anos, sendo 25 deles privados de liberdade cumprindo pena por crimes associados ao tempo em que foi um dos chefes de uma das favelas da Maré, se encontrou na arte. Desde dezembro de 2020, devido ao agravo da situação crítica da pandemia de Covid-19, passou a cumprir pena em regime aberto monitorado por tornozeleira eletrônica, Odir voltou para Nova Holanda no Conjunto de Favelas da Maré impactando positivamente o território por meio da arte.

Após ter o direito concedido para cumprir pena em liberdade, reportagens sobre Odir na mídia televisiva afirmavam que o caos e a violência seriam instaurados na região por uma disputa de controle nos pontos de vendas de drogas. No entanto, o que se deu foi uma grande mobilização de crianças e adultos divididos em grupos realizando tarefas para a construção de uma árvore de Natal feita de garrafas pets. 

“O que eles esperavam mesmo quando eu chegasse na rua eram matérias de jornais horríveis, né? Eu acho que se eu chegasse na Maré e a bala tivesse comendo, eu estava estampado em tudo quanto é jornal. Como eu vim e estou fazendo benfeitorias, ninguém nunca veio aqui fazer a entrevista comigo, nem o Estado procurar saber o que que eu tô fazendo”, ressalta.

Procurando uma forma de refúgio enquanto estava preso, Odir lembrou que gostava de desenhar quando ia para a escola. Após dois anos começou suas ações voltadas para o meio artístico e ainda na prisão onde criou o coletivo Encontro das Artes. Além de criar o grupo, Odir aprendeu técnicas de pintura com outro interno que monitorava a galeria de artes no Bangu 3 recém inaugurado, se tornando também um artista com quadros disputados por internos e funcionários.

A movimentação provocou mudanças notadas pela direção, professores e pelos internos que passaram a se matricular na escola para se tornarem integrantes da galeria, requisito exigido na penitenciária.

“Vimos no projeto Encontro das Artes, desenvolvido por Senhor Odir, uma forma de realmente dar vida ao espaço escolar. A cada aluno matriculado, era apresentado o espaço do projeto, que poderia ser frequentado no contraturno e que, inicialmente, oferecia oficina de pintura, desenho e trabalhos manuais com sucata”, afirma Millena Lemos, ex-diretora do Colégio Estadual Henrique de Souza Filho, localizado no Instituto Penal Vicente Piragibe. O desenvolvimento dos detentos a partir da ajuda de Odir também foi ressaltado pela diretora.

“O senhor Odir analisava o potencial de cada um e encaminhava para uma atividade com algum monitor. Semanas depois, aqueles alunos me procuravam para mostrar um quadro, um barco de papéis, um grafite… Pessoas que estavam acostumadas a ouvir que não serviam para nada, eram enxergadas com seus potenciais e produziam arte. Aproveitam seu tempo de forma construtiva. Se (re)descobriam como humanos que eram”. 

Apesar dos feitos, uma decisão judicial preocupa Odir, sua família, amigos e os integrantes do coletivo Encontro das Artes. Após dois anos em liberdade com uso da tornozeleira, o artista recebeu a ordem para retornar à prisão. A decisão não conta os dois anos como cumprimento de pena. Além disso, de acordo com o artigo 126 da Lei de Execução Penal, a cada 12 horas de frequência, em atividades artísticas, culturais ou escolares ou três dias trabalhados a pena pode ser reduzida em um dia. Condições essas que não estão sendo contabilizadas para a situação de Odir.

“O cálculo de pena é um direito anual do apenado. No cálculo deve constar os dias remidos, durante todo o cumprimento de pena, ou seja, em qualquer regime que este se encontre. Esse desfavorecimento prejudica o apenado na contagem para o benefício da Liberdade Condicional e até mesmo para o retorno ao regime aberto”, explica a advogada da Redes da Maré, Lucilene Gomes.

Desde que saiu da prisão, Odir conta que prosseguiu com seus estudos que iniciou ainda dentro do sistema carcerário, além de estar trabalhando diretamente com arte. O futuro do coletivo Encontro das Artes criado por ele se mostra promissor atraindo grandes patrocinadores e com feitos considerados marcantes dentro do Conjunto de Favelas da Maré. O andamento do projeto e da sua vida pessoal preocupa o artista com a nova decisão da justiça. 

“Não nego meu passado, não digo que não errei. Mas o estado nem procura saber o que que eu tô fazendo, não investiga. Pegam lá uma folha de papel e me julgam pelo meu passado, mas eles não conhecem o meu íntimo eles não estão me vendo no meu dia a dia. Não querem saber o que eu estou fazendo hoje, se eu estou deixando algum legado, alguma coisa boa, se eu estou tentando reverter aquela situação lá de trás”, desabafa. 

Cristiano Silva de Oliveira

Nascido e criado em Realengo, Zona Oeste do Rio, o ilustrador Cristiano Silva passou quase 11 dos seus 45 anos de vida privado de liberdade. No caso dele, a literatura se tornou aliada para os processos de reconstrução. 

“A prisão não tem funcionalidade, sua proposta é punir e estigmatizar. Contudo, a subjetividade de cada indivíduo reage aos ataques físicos e psíquicos que o sistema aplica. Muitos sucumbem, outros encontram possibilidades no caos. No meu caso, percebi como as engrenagens da prisão funcionavam”, afirma. 

Assim como Odir, a nova história de Cristiano se concretiza com sua atuação em um coletivo, além da rede de apoio de família e amigos. Integrando o Eu sou Eu, uma associação de egressos do cárcere que, agora nas universidades, lutam para contar suas próprias histórias, o autônomo e mais três pessoas têm o lema do grupo: “Não deixamos mais que ninguém narre as nossas dores”. 

Além de atuar como articulador institucional na organização, contribuir com ações afirmativas e incidências políticas, Cristiano também é graduando em história do 7° período pela Universidade Estácio de Sá (UNESA). Apesar de lutar contra o estigma de ter passado pelo cárcere, o ilustrador que foi indultado (quando a pena é perdoada e deixa de existir), há 7 meses, reforça a dificuldade de conviver com a marginalização impostas a pessoas egressas no dia a dia.

“Muito difícil, a pena se perpetua no cotidiano. Assumir ser um ex-presidiário é conviver com a sentença e a iminência do justiçamento social. O discurso do CPF cancelado e do bandido bom é bandido morto, encontra cada vez mais espaço no tecido social”, desabafa. 

Arquivo pessoal

Erivelto Melchiades

“O meu processo de reconstrução foi muito pela revolta contra o sistema”, assim define o futuro advogado, Erivelto Melchiades sobre sua história passada pelo cárcere. Preso a primeira vez em 2005 por porte ilegal de arma, ele não hesita “Eu estava errado”. Vivendo em condições insalubres, numa cela com 121 homens mas que era feita para comportar 17, na carceragem da extinta Polinter, na Praça Mauá, Erivelto estava disposto a reescrever sua história. 

Após recorrer na justiça e conquistar sua liberdade condicional, voltou a estudar, casou e se tornou pai. O problema e a revolta do morador do Morro do Cantagalo, se dá após ser preso novamente, depois de cinco anos em liberdade, por um crime que afirma não ter cometido. 

“Eu fui para a delegacia com minhas próprias pernas para poder esclarecer um fato que eles inventaram como um subterfúgio (pretexto) para poder estar indo até a delegacia. Chegando lá, eu recebi voz de prisão e fiquei preso. A partir daí, me gerou uma revolta muito grande por entender que o sistema queria novamente esse ciclo comigo, né? De sujeição criminal.”, desabafa.

Havia contra Erivelto uma denúncia por tentativa de latrocínio (roubo seguido de morte) que teria acontecido no mesmo ano em que foi preso pela primeira vez, em 2005. O que gerou ainda mais revolta ao então jovem (além de ressaltar as falhas da justiça brasileira) é que a tipificação no inquérito policial contra Erivelto era de peculato, crime específico para funcionário público que desvia dinheiro. Com esse processo, Erivelto recebeu a pena de sete anos em regime fechado, mas após recorrer, a justiça determinou dois anos e dois meses de pena. 

Depois de cumprir um ano em regime fechado e o restante em liberdade condicional, Erivelto pela segunda vez se reconstrói. Casou novamente, assim como se tornou pai e tenta recuperar contato com o filho do primeiro casamento. Decidido a mudar sua trajetória, Erivelto fez o Enem e além de conseguir concluir o ensino médio aos 28 anos com a prova, usou a nota para ingressar na faculdade de direito. Se formou em 2019 e hoje, com 37 anos, se prepara para a segunda fase do Exame de Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para começar a advogar. 

Além disso, o futuro advogado fundou a Associação Recomeço, que presta apoio aos familiares e pessoas que passaram no sistema penitenciário com cesta básica, atendimento psicológico, atendimento jurídico, entre outros serviços de apoio.

Arquivo pessoal

Desfecho

Cristiano e Erivelto tentam refazer suas vidas após a passagem pelo sistema penitenciário. Cristiano afirma “Ainda estou pulando obstáculos”, Erivelto ressalta “…não tem sido fácil, por mais que eu me formei e tenha determinado grau de instrução, é difícil se realocar no mercado de trabalho”. 

Essas entrevistas dadas ao Maré de Notícias, que não se cruzaram, contam histórias de egressos do cárcere e a capacidade, mesmo diante das dificuldades, de ressocialização dos indivíduos. Odir dos Santos, mareense fundador do Encontro das Artes, não teve a mesma chance de continuar reescrevendo sua história em liberdade e retorna, com suas próprias pernas para o presídio Evaristo de Moraes, nesta terça-feira, 9 de agosto. Apesar de afirmar sentir medo e preocupação com seu futuro, afirma que continuará com tudo que tem construído.

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