Às vésperas do Dia Nacional da Visibilidade Trans pessoas trans e travestis ainda enfrentam consideráveis obstáculos para acessar serviços básicos de saúde
Gabriel Horsth
No coração da Maré, entre vielas vibrantes e ruas movimentadas, histórias se entrelaçam pela resistência à vida. Beatriz Taxa, conhecida como Bia, uma mulher trans de 67 anos, moradora do Parque União, carrega consigo uma jornada de vida que se tornou símbolo de resiliência e esperança para pessoas trans na terceira idade.
Quantas pessoas como Bia você conhece? Uma pesquisa realizada pela Faculdade de Medicina de Botucatu, em 2020, apontou que apenas 1,9% da população brasileira é composta de pessoas trans. Muitos acreditam, porém, que esse número esteja subestimado, invisibilizando a realidade dessa comunidade, uma vez que os órgãos governamentais não incluem adequadamente esse contingente em suas diretrizes.
Às vésperas do Dia Nacional da Visibilidade Trans, celebrado em 29 de janeiro, pessoas trans e travestis ainda enfrentam consideráveis obstáculos para acessar serviços básicos de saúde. A história de Beatriz é um testemunho da determinação e da coragem que muitas pessoas trans mais velhas enfrentam em suas trajetórias. Ela nos lembra que, apesar das adversidades, podemos encontrar luz e esperança na vida, ressaltando a importância do cuidado constante com a saúde.
Contudo, a realidade é que, para muitas pessoas trans no Brasil, atingir a terceira idade é um feito ainda distante, necessitando, assim, de valorização e reflexão sobre os caminhos para alcançá-la.
Identidade e emprego
A jornada de autoafirmação e trabalho de Beatriz foi repleta de desafios, mas ela nunca desistiu. Seu esforço árduo não só garantiu sua sobrevivência, como também sua independência, algo raramente alcançado por mulheres trans de sua época. “Sempre trabalhei. Trabalhei 9 anos em uma empresa como cozinheira, mas antes fui obrigada a ser barman. Trabalhei 3 anos como cabeleireira e ainda fui auxiliar de mecânica por obrigação do meu pai”, compartilha Bia.
Ao migrar do Maranhão para o Rio de Janeiro, encontrou emprego em uma alfaiataria. Posteriormente, numa empresa petrolífera, onde trabalhou por 11 anos como auxiliar de serviços gerais, embora a empresa tenha resistido a sua identidade de gênero. “Eu ia pintosa assim mesmo, tiveram que me aceitar”, relembra.
Essa luta para afirmar a identidade de gênero é uma realidade comum para pessoas trans em toda sociedade, começando em casa e se estendendo ao mercado de trabalho.
Novos começos
“Em 1992, minha vida mudou completamente. Morei 15 anos com um rapaz que no fim me abandonou”, conta Bia. Apesar das dificuldades, ela seguiu em frente, mudando-se para diferentes lugares e desafiando estereótipos para afirmar sua existência.
Beatriz, no entanto, enfrentou problemas não apenas de saúde, mas também batalhas legais. Recebeu uma indenização do Estado por negligência hospitalar, mas seu advogado desapareceu com o dinheiro, deixando-a com uma valiosa lição sobre a importância de buscar justiça. Na época, com poucos recursos, não conseguiu rastrear o golpista. O acúmulo de desafios acabou afetando sua saúde mental.
Desafio do atendimento
Ao acessar o SUS, Beatriz encontrou desafios consideráveis. Ela relata sua insatisfação com o atendimento em uma unidade de saúde do território, uma realidade comum para muitas pessoas LGBTQIAPN+ que procuram atendimento médico. Apesar disso, Beatriz persistiu em buscar o auxílio necessário, incluindo apoio psicoterapêutico e medicação.
De acordo com a Constituição Federal de 1988, a saúde é um direito de todos os brasileiros, com o Estado sendo responsável por garantir esse direito de forma justa e igualitária. A Política Nacional de Saúde Integral LGBT busca assegurar que a comunidade tenha acesso a todos os serviços de saúde oferecidos pelo SUS, além de atender suas demandas específicas. A prática, porém, muitas vezes não corresponde às normativas, com profissionais de saúde deixando a desejar na prestação de atendimento sem discriminação.
Beatriz relembra um episódio transfóbico vivido durante um atendimento no SUS. Em um hospital público, foi submetida a um tempo de espera excessivo, sendo a última a ser atendida, mesmo tendo chegado antes de outros pacientes. Foi, inclusive, escoltada por um segurança até a sala do médico.
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“A doutora achou que eu seria agressiva, mas eu não sou assim. Ela me tratou com um desprezo tão grande”, relata Bia, que buscou orientação do enfermeiro-chefe do hospital, mas optou por não denunciar o caso para continuar tendo acesso ao atendimento.
Infelizmente, essa situação é apenas um exemplo do tratamento discriminatório enfrentado por muitas pessoas trans nos serviços de saúde pública. O direito ao nome social, por exemplo, conquistado como um avanço para essa comunidade, nem sempre é respeitado nos registros de atendimento.
A psicóloga do Grupo Conexão G, Larissa Silva da Conceição, destaca a necessidade de compreensão sobre a heterocisnormatividade compulsória, que fundamenta o atendimento à saúde no Brasil. Esse modelo social tende a marginalizar o que foge da norma estabelecida, tornando essencial o apoio às pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ no enfrentamento das opressões diárias.
A profissional, que acompanha projetos da instituição focados na promoção do respeito à diversidade e formação de profissionais, traz algumas recomendações importantes para apoiar pessoas da comunidade.
“Primeiramente, é importante respeitar a singularidade do processo de cada pessoa. Devemos oferecer apoio para o enfrentamento das opressões de modo que ela não se sinta sozinha, reconhecer que ao vivenciar o processo pode haver contradições, e acolhê-las. Podemos fazer um mapeamento das redes afetivas e de cuidado e desenvolver uma identidade positiva que promova orgulho” diz Larissa.
Refúgio e vitalidade
Beatriz encontra alento em sua paixão pela arte. “Amo meu trabalho com a arte, é babado forte, a música é meu amor eterno. Adorava performar na favela”, recorda Bia sobre os shows de drags nas décadas de 70 e 80, revelando a paixão que a mantém vibrante. Ela guarda com carinho as lembranças da vida noturna, como a imagem de uma mulher jovem em um porta-retratos que ostenta uma peruca deslumbrante e trajes exuberantes e mostra sua verdade enquanto dublava, em uma época marcada por desafios e preconceitos, mas também por celebração da própria identidade.
No Brasil, a expectativa de vida média das pessoas trans é de aproximadamente 35 anos. Esse número alarmante evidencia a necessidade de valorizar e garantir condições dignas de vida para essa comunidade. Beatriz Taxa representa uma exceção em uma realidade cruelmente desfavorável para pessoas trans mais velhas.
Seu relato ressoa como um chamado à reflexão sobre as políticas públicas, a garantia de direitos e o respeito à dignidade humana para todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero.
“Eu vivo o hoje, sabe. Eu sei que tem o amanhã, mas procuro viver o máximo hoje”, diz Bia, destacando sua filosofia de vida, que a mantém resiliente e positiva diante das dificuldades.