A violência armada na Maré em 2021

Data:

Por Daniele Moura em 10/03/2021 ás 09h

Em sua sexta edição, o Boletim de Segurança Pública traz novos dados sobre a (In)segurança Pública na Maré

Desde 2016, o projeto De Olho na Maré! do eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré coleta dados inéditos sobre a violência armada nos territórios. Ao longo dos últimos anos, o monitoramento diário dos diferentes impactos da ação ou da omissão do Estado nas 16 favelas da Maré evidencia o quadro de insegurança urbana mantido por um modelo de segurança pública de confronto, predominante no Rio de Janeiro, que submete moradores de favelas e periferias a condições extremas de injustiça, negação de direitos, invisibilidade, medo e dor.

 Depois de 18 meses de suspensão de operações policiais em favelas do Rio de Janeiro no período de pandemia da covid-19, determinada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o 6º Boletim Direito à Segurança Pública na Maré analisou os efeitos da aplicação da chamada pela ADPF das Favelas. Uma das percepções do levantamento foi que seu cumprimento varia entre a Maré e outras favelas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, ou mesmo entre as 16 favelas que formam a Maré. A efetividade da suspensão também não é igual com o passar do tempo: o número de operações aumenta depois de um período de maior restrição. 

Entre 2017 e 2021 aconteceram 132 operações policiais e 114 confrontos entre os grupos armados nas favelas da Maré. Juntos, estes 246 momentos de conflito causaram 157 mortes e interromperam, por 94 dias, o funcionamento das unidades de saúde, e por 70 dias as aulas nas escolas da Maré.

Diferentemente do que é amplamente divulgado, a violência armada no Rio de Janeiro não é fruto de polos opostos combatendo numa guerra. Depois de décadas, essa estratégia oficial não apresenta nenhum resultado positivo, nem no combate ao tráfico internacional de drogas e muito menos na diminuição dos conflitos locais, mas alimenta uma lucrativa indústria bélico-militar que toma toda a agenda e o orçamento público do Estado do Rio.

Ao longo dos anos de monitoramento realizado pelo De Olho na Maré!, essa linha de ação consolidou-se como o modelo de segurança pública nas favelas e periferias urbanas e se limita, praticamente, ao confronto impelido pelas forças de segurança do estado através do enfrentamento bélico e permeado por ações arbitrárias e violações de direitos. As operações policiais, que deveriam ser o último recurso, sempre foram a principal e mais comum das ações da polícia em favelas como a Maré, em detrimento de outras formas de se prover segurança pública, como investigação, inteligência e policiamento.

Dados revelam, ainda, que essa política vem impactando sobretudo na letalidade violenta de uma parcela muito específica da população: os jovens negros e moradores de favela. Nos territórios da Maré, em 2021, ocorreram pelo menos duas operações policiais com características de ocupação, em que os policiais permaneceram por 26 horas consecutivas no Parque União e por três dias seguidos em Marcílio Dias. Além de mortes, as ações foram marcadas por casas invadidas sem mandado de busca e apreensão, por subtração de pertences, ameaças, violências físicas, humilhações e danos ao patrimônio pelos agentes de segurança pública.

Dados apontam que a ADPF das Favelas reduziu consideravelmente os impactos da violência armada. O número de operações policiais caiu para menos da metade, passando de 39 em 2019 para 16 em 2020, impactando na redução de 88% da letalidade violenta provocada por agentes do Estado na região das favelas da Maré. Já em 2021, houve um aumento de 25% das operações policiais e 120% nas mortes por intervenção do Estado, mas ainda abaixo do registrado em 2019.

 Impactos da violência 

Além das violações de direitos individuais (vida, integridade física, liberdade e até propriedade), a violência armada impõe obstáculos significativos para os moradores das favelas da Maré ao acesso a direitos sociais e coletivos, como o direito à educação e à saúde. Isso significa que, apesar de todas as lutas dos moradores por melhorias na qualidade de vida e de importantes conquistas (como o crescente número de escolas na Maré), a violência armada impede que melhorias perdurem e condena a população a permanecer nos ciclos de pobreza, violência e negação de direitos.

A violência armada causa, rotineiramente, a suspensão das atividades escolares. O De Olho na Maré! registrou seis dias sem aula por conta das ações da violência armada na Maré, em 2021. Destes, cinco foram em decorrência de operações policiais e um, por conta da ação de grupos armados. Para além deste impacto direto, a militarização do cotidiano também leva a significativos danos à saúde mental dos profissionais, estudantes e familiares, além de depredar o patrimônio das unidades escolares. Com isso, impulsiona-se a evasão escolar e a rotatividade dos profissionais.

No ano passado, segundo informações da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), as unidades de saúde tiveram 14 dias sem atendimento, oito dias com atendimentos interrompidos pontualmente e 16 dias com a suspensão das atividades externas. No CMS Vila do João, por exemplo, que atende mais de 25 mil pessoas entre as favelas da Vila do João e Conjunto Esperança, a unidade precisou suspender suas atividades por sete dias; em um dia, limitou a circulação dos profissionais no território, impactando o cuidado domiciliar a pessoas em isolamento por covid-19.

Neste ano, o projeto identificou 20 operações policiais, sendo 14 planejadas e seis emergenciais, além de três outras ações das forças de segurança. Em relação ao ano de 2020, o número de operações policiais aumentou 25%, passando de 16 para 20, e o número de mortes subiu 120%, passando de cinco em 2020 para 11 em 2021. 

Apesar da proibição das operações policiais em favelas do Rio de Janeiro no período de pandemia, apenas em quatro meses elas não aconteceram na região da Maré. Já quanto aos resultados das operações, a recuperação de objetos de crimes ou armas e drogas ilícitas representou uma média de apenas 24.6% do que poderia ser considerado o sucesso de uma operação destinada à repressão de crimes. Detenções também poderiam ilustrar o cumprimento dos objetivos das operações, dentro desta lógica. No entanto, apenas 29% das operações tiveram detenções, mas  provocaram a morte de 11 pessoas. 

Contrariando a legislação vigente, que exige mandados judiciais para que policiais parem pessoas e efetuem revistas e buscas em residências e automóveis, na Maré estas abordagens são realizadas, via de regra, sem mandado e com abuso de autoridade, o que leva a outros atos de agressão e descumprimento indiscriminado da lei. O De Olho na Maré! registrou pelo menos 103 violações de direitos em 2021, entre elas invasão de domicílio; dano ao patrimônio; violência física, psicológica e verbal; ameaça; subtração de pertences; assédio sexual e tortura, além de morte e ferimentos por arma de fogo. 

Os números levantados pelo De Olho na Maré! indicam que 70% das operações policiais na Maré em 2021 aconteceram próximo a escolas e creches e 83%, próximo a unidades de saúde. Não foi identificado o uso de câmera de vídeo, áudio ou GPS em nenhuma operação policial, assim como apenas em uma foi requisitada ambulância e equipes de saúde; 60% das operações policiais resultaram em denúncias de violação de domicílios. Apesar das 11 mortes registradas em 20 operações, apenas uma perícia foi realizada.

O evento de lançamento acontece hoje dia 10/03/2022 às 17h no Centro de Artes da Maré, na Rua Bittencourt Sampaio, 181, Maré.

O estudo completo está disponível aqui.

Compartilhar notícia:

Inscreva-se

Mais notícias
Related

Sementes de Marielle; confira segunda parte da entrevista com Mãe da vereadora

Nessa segunda parte da entrevista, Marinete fala sobre as sementes deixadas por Marielle, do protagonismo de mulheres negras em espaços de poder e a partir do contexto do assassinato da vereadora, como acreditar em justiça.

‘Não há uma política de reparação’, diz Mãe de Marielle sobre vítimas do estado

Além de criticar o Estado e o Judiciário, que, em diversas instâncias, colaboraram pela impunidade do crime, Marinete aproveitou para reforçar o sonho que a família tem: inaugurar, via Instituto, o Centro de Memória e Ancestralidade