O direito constituído ao aborto legal e o encontro desnecessário com o Judiciário

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Caso da menina de 11 anos que teve seu direito violado após um estupro revelou que a prática não anda conforme a lei estabelecida desde 1946

Daniele Moura*, em 11/07/2022 às 07h

Desde 1946 é direito de toda brasileira fazer o aborto sem ser descriminalizada se: o bebê tiver anencefalia (uma má formação fetal); a vida da gestante estiver em risco ou a gravidez for fruto de um estupro. Importante ressaltar que toda relação sexual com uma menor de 14 anos é considerada estupro de vulnerável, portanto, qualquer menina tem direito ao aborto. Para conseguir o atendimento nos casos de malformação fetal ou risco de morte da mãe é necessário um laudo médico. 

Já no caso de estupro, a lei determina que a mulher seja atendida em ambiente hospitalar, ou seja, por médicos, enfermeiros, assistentes sociais e psicólogos. No universo do aborto por violência sexual não há relacionamento com o judiciário, isso quer dizer que uma mulher que esteja grávida fruto de um estupro não tem de encontrar juízes, policiais nem advogados. Ela não precisa fazer registro de ocorrência na delegacia, não precisa denunciar o agressor, não precisa de laudos que comprovem a violência física, nem ir ao IML, e tampouco é necessária a autorização judicial, basta ir ao hospital de referência. 

A Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento, do Ministério da Saúde informa que o Código Penal não exige qualquer documento para a prática do abortamento nos casos de estupro e, além disso, a mulher não é obrigada a noticiar o fato à polícia. “Deve-se orientá-la a tomar as providências policiais e judiciais cabíveis, mas, caso ela não o faça, não lhe pode ser negado o abortamento”, aponta texto do Ministério da Saúde. Acontece que, mesmo tendo esse direito garantido há décadas, muitas mulheres não conseguem acessar esse atendimento.

Recentemente, o caso da menina de 11 anos que teve seu direito violado após um estupro no sul do país, revelou que a prática não anda conforme a lei estabelecida desde 1946. O aumento da vigilância sobre os corpos femininos tem trazido consequências drásticas, como o desconhecimento sobre o direito de interromper a gravidez de forma segura e acolhida por equipes médicas. De acordo com o portal Azmina, estima-se que de 2010 a 2016 foram feitos 500 mil abortos por ano, destes apenas mil foram feitos de forma segura. Se o atendimento é falho, as mulheres que necessitam interromper a gravidez acabam recorrendo para formas clandestinas, cujo risco de complicações é alto. Dados do SUS mostram que, só no primeiro semestre de 2020, os atendimentos por abortos mal-sucedidos foram 79% maior que o mesmo período de 2019.

Crianças não sendo crianças 

De acordo com o Ministério da Saúde, em 2021, 17.316 garotas de até 14 anos foram mães no Brasil. Esse dado não fala apenas de maternidade, mas de violação de direitos – de estupros. Não é raro no Brasil descobrir a violência sexual sofrida por meninas com a gravidez. De acordo com o estudo Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil (UNICEF, FBSP, 2021), entre 2017 e 2020, a cada 20 minutos, uma menina foi estuprada no Brasil. A maioria dos casos de violência sexual, cerca de 86%, ocorre nas casas é cometido por conhecidos como pais, padrastos, tios, primos, irmãos, cunhados. Lembrando que esses são os números registrados, porque crimes sexuais contam com um alto índice de subnotificação.

Abrindo o véu

O aborto no Brasil sempre existiu de forma obscura feitos por meio de curandeiras, remédios, chás, clínicas clandestinas – luxuosas ou capengas. E são esses lugares que as mulheres recorrem, mesmo tendo o direito de fazer aborto de forma legal e segura. Isso por serem intimidadas e até criminalizadas pelo simples fato de usufruírem de um direito garantido por lei. Por conta disso, tem sido cada vez maior o número de mulheres que morrem por complicações ligadas ao aborto clandestino.

Os hospitais brasileiros devem atender mulheres que dão entrada com complicações por aborto, seja ele espontâneo ou não. Vale lembrar que tudo que é dito ao profissional de saúde está sujeito a sigilo médico, por isso médicos e enfermeiros não podem fazer denúncia de mulheres que fizeram aborto ilegal – no entanto, existem casos de mulheres denunciadas por médicos no Brasil. A  norma técnica do Ministério da Saúde orienta o atendimento humanizado a todas as mulheres que buscam serviços de saúde após um aborto (seja ele espontâneo ou não). Nela é explicado como proceder caso haja um aborto incompleto, infecção e hemorragia, sem julgamento ou preconceitos com a mulher.

Como obter ajuda

Um médico pode se recusar a fazer o aborto alegando a objeção de consciência, mas o hospital não. No caso da chamada objeção de consciência – obrigação ou proibição, fundada na convicção religiosa, política, ética ou moral para recusar um dever imposto por lei – o profissional de saúde precisa indicar outro médico para fazer o procedimento. 

No entanto, achar hospitais que oferecem esse atendimento tem sido cada vez mais difícil. De acordo com o DataSus, 40% das mulheres que fizeram o aborto tiveram que viajar para outra cidade para ter acesso ao direito. Para ajudar nesses casos há o Mapa do Aborto Legal que mostra todos os hospitais que fazem o procedimento no Brasil. Na cidade do Rio são eles:  Maternidade Escola UFRJ, em Laranjeiras, Hospital Maternidade Fernando Magalhães, em São Cristóvão, e a Maternidade Carmela Dutra, no Méier.

Outro empecilho para a garantia deste direito está no tempo de gestação. O código penal brasileiro não determina o prazo máximo para a interrupção da gravidez, porém o Ministério da Saúde tem dificultado o acesso ao aborto, orientando que após 21 semanas gestacionais o médico tem que priorizar a vida do feto. A interrupção da gravidez não é algo complexo, do ponto de vista médico, mas do ponto de vista moral ganha contornos de complexidade devido ao conservadorismo em voga na sociedade brasileira. Com isso, organizações de mulheres têm trabalhado para garantir a interrupção da gravidez com segurança. 

É o caso do Milhas pela vida das Mulheres, uma iniciativa de ação direta, garantindo o acesso ao aborto seguro e legal para as mulheres brasileiras. Desde setembro de 2019, a Operação Milhas já recebeu mais de 5 mil pedidos de ajuda de mulheres de todas as regiões brasileiras. O projeto ajuda com informações e despesas para que o direito ao aborto seja efetivado, na própria cidade, em outro estado ou até em outro país.  Outra ação é o monitoramento dos dados do Ministério da Saúde sobre criminalização ao aborto. Desde a fundação do Milhas, em 28 de setembro de 2019, 1.347.229 mulheres abortaram;  673.122 mulheres foram internadas por complicações ligadas a aborto inseguro, 3.939 mulheres morreram por aborto inseguro e R$ 13.491.989,13 foram gastos pelo SUS com complicações ligadas a aborto clandestino.


Os números DA CRIMINALIZAÇÃO desde a fundação do MILHAS, em 28/09/2019*
(Fonte: PNA e Ministério da Saúde)

Antes do aborto

A primeira coisa a fazer é um exame de sangue Beta-HCG para confirmar a gravidez, depois um ultrassom para verificar o tempo da gestação e se o feto está no útero. Caso seja identificada uma gravidez ectópica (quando o feto está fora do útero, o que representa risco à vida da mulher), a interrupção da gestação é assegurada pela lei. O procedimento deve ser feito por um médico, pois o uso de medicamentos nesse caso é perigoso. Se o feto estiver no útero, o aborto pode então ser feito por meio da aspiração intrauterina ou com remédios.

Atendimento

Antes de se submeter ao aborto, as mulheres sempre passam por uma conversa com psicólogo para explicar o que vai ser feito e os riscos envolvidos; ter certeza de que ela quer fazer o procedimento; garantir que ela não está sendo forçada a abortar – se alguém estiver forçando a mulher a abortar, no Brasil, ela pode ligar para o 180 e fazer uma denúncia.

A mulher que busca um aborto aqui no Brasil tem a possibilidade de fazer uma aspiração intrauterina ou tomar o Misoprostol (mais conhecido como Cytotec, seu nome comercial), dependendo da idade gestacional e de outros fatores de saúde. Para direcionar as políticas públicas nos países que permitem a interrupção da gravidez, a Organização Mundial da Saúde conta com uma orientação técnica para abortamento seguro que trata de tudo: desde os procedimentos para a interrupção até orientações sobre contracepção que devem ser dadas à mulher após o procedimento. 

Aborto com remédios

A OMS indica de forma segura o uso combinado de dois remédios para o aborto, o Misoprostol e a Mifepristone. No entanto, como a Mifepristone não é fácil de encontrar, há a possibilidade do uso somente do Misoprostol. No Brasil, nem para o aborto legal a Mifepristone está disponível. 

Além da interrupção da gravidez, o Misoprostol é usado no SUS para indução do parto, tratamento de hemorragia uterina e amolecimento cervical antes do parto. Ter acesso a esse medicamento no Brasil não é fácil, ou é por meio do mercado ilegal ou pelas organizações internacionais que enviam o medicamento: Women Help Women, Women on Web. Mas não é toda mulher que pode tomá-lo e nem de qualquer jeito. Segundo o manual da OMS, o Misoprostol pode ser tomado com segurança por mulheres de até 23 semanas de gestação com acompanhamento de um profissional de saúde. 

Aspiração Intrauterina

O aborto cirúrgico só pode ser feito até 12 semanas de gestação e a OMS recomenda a aspiração manual intrauterina (AMIU), pois é considerada mais segura que a curetagem. No procedimento da aspiração, cânulas de plástico são inseridas dentro do útero e usadas para esvaziá-lo. É usada anestesia local ou apenas remédios para dor, não havendo necessidade de anestesia geral para esse procedimento. 

A curetagem não é um procedimento recomendado pela OMS, no entanto ela ainda é feita no Brasil, sobretudo em clínicas clandestinas. Fora dos casos de aborto feitos à luz da legislação, é difícil ter certeza de qual método uma clínica clandestina vai usar e isso pode colocar a vida da mulher em risco.

Depois do Aborto

No manual da OMS também há indicações de remédios para evitar a dor após o procedimento, explicações sobre os sintomas possíveis e orientações básicas como não ter relações sexuais, nem inserir objetos na vagina, até que pare o sangramento. Outra recomendação é de que as mulheres recebam informações sobre métodos contraceptivos para evitar uma nova gravidez indesejada. Para abortos realizados ainda no primeiro trimestre e sem complicações, a OMS considera seguras as seguintes opções de contraceptivos: pílula, adesivo anticoncepcional, anel anticoncepcional, DIU de cobre ou hormonal, anticoncepcional injetável ou não, implante anticoncepcional, camisinha e diafragma. 

SAIBA MAIS: 

O portal Catarinas entrevistou Olímpio Moraes, médico obstetra e diretor de hospital referência em aborto legal no Recife. Ele revela que suportar a gravidez infantility o final é mais arriscado que aborto legal. Leia aqui

*Reportagem construída em parceria com a equipe da Revista AzMina

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