Viver as consequências das fortes chuvas no Rio é um problema que acompanha os moradores da Maré ao longo dos anos
Por **Bianca Ottoni e Sthefani Maia, em 20/01/2022 às 07h. Editado por Edu Carvalho.
Se uma máquina de teletransporte existisse, alguém poderia jurar que chegou a Veneza, cidade italiana, ao pisar na Nova Holanda, depois de uma chuva forte. Sim, as semelhanças entre as duas regiões existem: ambas foram aterradas e são alagadiças.
Com tantos alagamentos, a impressão que se tem é de que a Nova Holanda está abaixo do nível do mar. Mas, na verdade, não está. O relatório Áreas da cidade passíveis de alagamento pela elevação do nível do mar, lançado pela Prefeitura do Rio de Janeiro em 2008, mostra o contrário. A pesquisadora, arquiteta e urbanista Carolina Galeazzi explica: “‘Mínimas’ áreas se encontram abaixo de 1,5 metro, que são passíveis de alagamento, mas não estão abaixo do nível do mar. Uma dessas áreas está na Nova Holanda. No entanto, a maioria da Maré está acima de 1,5 metro com relação ao nível do mar””
Assim como muitas áreas da Maré, a Nova Holanda foi construída sobre um aterro. “Temos inúmeros registros de antigos moradores e suas casas de palafitas que ainda hoje são uma das principais características históricas do conjunto de favelas da Maré”, conta Lorena Froz, moradora da Nova Holanda e mobilizadora territorial do Eixo Desenvolvimento Territorial, da Redes da Maré. No entanto, hoje, esse fato se transformou em um alerta para os moradores. Como a água dominava a área ocupada pela Maré, existe a possibilidade de, um dia, ela reivindicá-la de volta por conta da falta de escoamento correto durante os temporais tão comuns no Rio. “O fato de ser um aterro pode se relacionar com as enchentes. A Maré se encontra em uma zona costeira de baixa elevação para onde alguns rios, hoje aterrados ou canalizados, corriam”, explica a urbanista.
Ação humana
A interferência humana resultou, em muitos casos, em prejuízos ao meio ambiente – incluindo alagamentos e inundações. Os efeitos do aquecimento global (aumento da temperatura média na atmosfera e nos oceanos) contribuíram para a ocorrência de chuvas mais fortes e aumentaram as chances de alagamento em pontos críticos do espaço urbano. A poluição é outro fator a se considerar, já que o descarte indevido de lixo pode entupir bueiros, impedindo o escoamento da água da chuva acumulada nas ruas. Outro ponto importante é o desmatamento, pois a vegetação reduz a velocidade com que a água atinge o solo e traz firmeza à terra através do enraizamento, impedindo que ocorram deslizamentos.
A área onde hoje se ergue a Nova Holanda já era alagada naturalmente; agora, com a ocupação, a água da chuva quase não tem por onde ser escoada. “A Nova Holanda é coberta por asfalto, o que deixa o solo completamente impermeável; os rios, que já viraram valões, também não dão mais conta”, diz Lorena Froz.
Essa impermeabilização, junto com a verticalização, as poucas áreas verdes, entre outros aspectos, são as principais causas do fenômeno conhecido como ilhas de calor. Mas, na verdade, elas agravam um problema maior: as variações climáticas. “A Maré, como parte da cidade, tem formações de ilhas de calor. Mas o aumento da intensidade das chuvas no Rio de Janeiro pode estar relacionado às mudanças climáticas, como o aquecimento global”, aponta Carolina. Quanto aos principais problemas relacionados aos alagamentos, Lorena destaca “a pouca quantidade de bueiros nas ruas e a falta de manutenção dos existentes”.
Alagamentos frequentes
O aumento da população da Maré e o grande número de construções sobrecarregaram o sistema de coleta de esgoto e de chuva, o que pode ter comprometido as tubulações e prejudicado sua estrutura física, diminuindo sua capacidade de dar vazão ao excesso de água. É o que conclui Carolina Galeazzi: “As possíveis obstruções na rede de escoamento da chuva, como ligações da tubulação de esgoto na rede de águas pluviais, lixo acumulado nas bocas coletoras (normalmente, despejado em local não apropriado e arrastado para os bueiros durante os temporais) e seu consequente entupimento são alguns fatores que podem causar os alagamentos em dias de chuva.”
Os períodos de chuva forte na Maré preocupam a população (principalmente pelo histórico de alagamentos no território) principalmente pela falta de implementação de políticas públicas na área, como saneamento básico. Segundo o presidente da Associação de Moradores da Nova Holanda, Gilmar Junior, as ruas mais afetadas são Bittencourt Sampaio, Sargento Silva Nunes, Principal, Teixeira Ribeiro, Tancredo Neves e Esperança.
Quando se fala nos riscos que os alagamentos representam, é necessário ter consciência de que eles vão além da perda de bens materiais. Isso porque a água parada atrai mosquitos, ratos e baratas, aumentando as chances de transmissão de doenças. Mas, afinal, é possível alertar os moradores antes dos alagamentos? Carolina garante que sim; segundo ela, é preciso “acompanhar as previsões meteorológicas e observar qual é a quantidade de chuva que cai em determinado espaço de tempo”. Tal monitoramento pode antecipar os prejuízos e ajuda a diminuir o risco de infecções dos moradores. Ou seja, “com um bom planejamento de saneamento e esgotamento sanitário, pelo menos metade desses problemas poderia estar resolvido”, conclui Lorena.
Realidade dos moradores
Ideias para solucionar os problemas não faltam. Segundo Lorena Froz, “um sistema de esgotamento sanitário para todos os moradores, programas de revitalização dos espaços do território e monitoramento dos valões de todas as favelas da Maré, um programa de coleta de lixo que converse com a realidade dos moradores, manutenção periódica das caixas de ralo e desobstrução de aquedutos da região – os caminhos são vários e conhecidos”.
Enquanto isso não ocorre, Carolina sugere que a população se una tanto para exigir do poder público um projeto que amplie as redes coletoras de esgoto e de drenagem na Maré como para conscientizar os moradores a não fazer ligações clandestinas na rede pluvial nem jogar lixo na rua. “É possível, também, aumentar as áreas permeáveis, por onde a chuva possa escoar, ampliando áreas de jardins e hortas ou construindo jardins de chuva, por exemplo, que estocam parte da água antes de ela escoar. Também é possível coletar a água da chuva dos telhados e usá-la para molhar as plantas e a própria rua em dias de calor”, recomenda.
Existe a possibilidade de que, algum dia, essa água alagada não escoe? ”Essa situação deixou de ser uma possibilidade e já é uma realidade iminente”, diz Lorena. E Carolina completa: isso já acontece em alguns lugares, mas pode piorar se o aquecimento global avançar a ponto de aumentar a intensidade das chuvas e o nível da água do mar. O cenário pode ser agravado, também, “se as pessoas não se conscientizarem que precisam cuidar do seu lugar, sem esperar pela ampliação da coleta de esgoto e da drenagem”, reforça a arquiteta.
Como a máquina de teletransporte ainda não existe, quem pisa na Nova Holanda está, de fato, em terras mareenses. Carolina desvenda a grande diferença entre a comunidade da Maré e a cidade de Veneza: “Pode-se dizer que os alagamentos em Veneza são por que a cidade ‘afundou’ alguns centímetros devido à exploração dos poços artesianos como ocorre na cidade do México”. Por fim, um alerta: “em Veneza, o nível do mar aumentou, fazendo com que, em épocas de maré alta, a cidade alague: o que ainda não é a causa dos alagamentos na Maré, mas que pode vir a ser, se o aquecimento continuar”.
(*) Bianca Ottoni e Sthefani Maia são estudantes universitárias vinculadas ao projeto de extensão Laboratório Conexão UFRJ, uma parceria entre o Maré de Notícias e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)