Indo na contramão das narrativas que não apuram a vivência das pessoas LGBTQIAPN+ e trazendo o conceito de escrevivência da escritora Conceição Evaristo como referência, precisamos falar da resistência da comunidade que se expressa dentro e fora do conjunto de favelas da Maré.
Juliana Neris
Lesbocídio
Apesar da violência não ser o foco, é impossível não falar dela, já que em 2022 o Brasil registrou, em média, duas mortes de pessoas LGBTQIAPN+ a cada três dias.
O dossiê foi realizado pela Associação Acontece LGBTI+, pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) e pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), que cobram políticas públicas para diminuição da violência e a produção de dados governamentais.
Quando olhamos para mulheres lésbicas e bissexuais que vivem em favelas e periferias, os dados disponíveis são praticamente inexistentes e a ausência de registros oficiais subestima a gravidade do problema. O dossiê sobre lesbocídio, desenvolvido a partir do projeto de pesquisa A história que ninguém conta, da pesquisadora Camila Rocha Firmino, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), busca preencher essa lacuna.
Segundo a publicação, 55% dos casos de violência acontecem em lésbicas não-feminilizadas, ou seja, que não se adequam ao padrão de feminilidade que a sociedade impõe às mulheres; e 83% são mortas por homens.
Recentemente, em dezembro de 2023, a notícia do brutal assassinato de Ana Caroline Sousa Câmpelo, uma jovem de 21 anos encontrada morta com sinais de extrema crueldade no Maranhão, provocou indignação na comunidade local. É a narrativa de morte que busco mudar, sem romantismos, mas sabendo que o amor e o afeto LGBTQIAPN+ é um ato de resistência.
Afeto e política
Na Maré, surge um espaço revolucionário além dos encontros casuais regados a churrasco e cerveja. Um local onde a alegria não é apenas um sentimento, mas sim a estratégia política principal, abrindo caminho para a cultura, o acolhimento e a defesa dos direitos das mulheres lésbicas. Dayana Gusmão, uma das fundadoras da Casa Resistências da Maré, destaca a influência crucial do fotógrafo falecido em 2021, Bira Carvalho, em sua jornada pessoal e na formação deste projeto. Em suas palavras, “a alegria é a maior potência da favela.”
A coletiva prioriza diálogos sobre afetos antes de abordar o tema da violência. Para elas, discutir violência sem mencionar o amor seria injusto. A base dessa casa é a alegria, que se abre para todas as mulheres LBT como um espaço seguro.
Em um contexto extremamente patriarcal, em que rivalidades entre mulheres são fomentadas, o estímulo ao amor entre elas desafia a estrutura da sociedade. Assim, o afeto se torna não apenas uma abordagem, mas sim uma vertente política, entendendo que qualquer demonstração de afeto pode desencadear violência após experiências traumáticas. A fundadora do coletivo relata que das 39 mulheres acolhidas na Casa, 38 sofreram violência praticada por familiares.
Este refúgio tornou-se um farol para mulheres na favela, criando uma rede de apoio vitalícia. A atenção e cuidado são transmitidos a cada chegada e partida das acolhidas, mantendo a Casa Resistências da Maré comprometida com a missão de promover o afeto como semente, rede e ato político.
Paloma Marins, coordenadora de empregabilidade, destaca a confiança como uma das mais significativas demonstrações de afeto. Ela ressalta a importância de cuidado, acompanhamento e a inspiração da vereadora Marielle Franco, lutando não apenas por saúde mental, mas também por espaço e confiança como expressões de afeto.
Para além das soluções racionais, como investimento em políticas públicas, percebe-se a centralidade dos processos subjetivos, em que a sensação de segurança é alcançada na presença de seus pares. Esse projeto transcende barreiras físicas e políticas, erguendo-se como um farol de esperança, no qual o afeto é a ferramenta poderosa que impulsiona a resistência e a transformação social na Maré.