Analfabetismo Funcional: Um obstáculo ao real cumprimento da cidadania

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Um em cada quatro brasileiros não consegue compreender textos simples, como bula de remédios e manuais de eletrodomésticos

Diego Jesus

Segundo pesquisa divulgada pelo Instituto Paulo Montenegro e pela ONG Ação Educativa em 2016, um entre quatro brasileiros é considerado “analfabeto funcional”. Em muitos casos, os analfabetos funcionais conseguem reconhecer letras, desenvolver leituras e resolver operações matemáticas simples. Apesar disso, esses indivíduos apresentam dificuldades na interpretação de textos longos e na resolução de problemas numéricos mais complexos, como a leitura de gráficos e tabelas. Os analfabetos funcionais não conseguem compreender textos como notícias, bulas de remédio, manuais de eletrodomésticos, passagens bíblicas, como também têm limitações ao preencher formulários de emprego e até mesmo ao escrever mensagens instantâneas utilizando aplicativos de celular e páginas da internet. É possível que um indivíduo analfabeto funcional não consiga explicar o que leu logo após ter finalizado a leitura de um texto longo. A causa do problema está na baixa qualidade do ensino. Muitos trabalhadores analfabetos e analfabetos funcionais, principalmente no caso daqueles com idade avançada, têm dificuldades para retornar à escola. A longa carga horária no trabalho implica indisposição para enfrentar a sala de aula – o que desestimula essas pessoas a aprender a ler e escrever ou a aperfeiçoar o que já sabem. Os graus de analfabetismo mexem diretamente com a autoestima dos indivíduos nessa situação.

Educação de Jovens e Adultos

Gisa Gonçalves, 34 anos, diretora do CIEP Gustavo Capanema, localizado na comunidade Vila do Pinheiro, na Maré, relata a experiência da escola com o – Programa de Educação de Jovens e Adultos (PEJA). O programa tem 30 anos e, inicialmente, atendia a adultos e pessoas da terceira idade que tentavam retornar para a escola. Esse perfil mudou com o passar do tempo. Nos últimos anos, o PEJA na Maré tem sua clientela formada em grande maioria por jovens e adultos com idades entre 16 e 30 anos. “Nós realizamos uma pesquisa anual com os alunos para saber qual a intenção deles com o retorno ao ensino noturno. Muitos são trabalhadores analfabetos, pessoas que nunca tiveram contato com a escola, ou analfabetos funcionais, pessoas que já estiveram inseridas no sistema de ensino, mas desejam expandir seus conhecimentos para terem melhores oportunidades de emprego no mercado de trabalho”, relata Gisa. Diferentemente do ensino diurno, dividido por anos, o PEJA está organizado por blocos. Os níveis atendem da Alfabetização ao Ensino Fundamental 1, e a transição de um bloco para o outro depende do rendimento do próprio aluno. Segundo Gisa, “o CIEP Gustavo Capanema conta com um grupo de professores que está há 20 anos na escola desenvolvendo esse trabalho. Apesar de todos os problemas de violência que a Maré vivencia cotidianamente, eles estão engajados em transformar a realidade local por meio da educação”.  O CIEP Gustavo Capanema atende, atualmente, a 285 moradores da Maré por meio do PEJA, com faixa etária de 16 a 70 anos. Segundo a diretora da escola, a experiência com o programa identifica que a recorrente presença de analfabetos funcionais é consequência da precariedade no sistema educacional brasileiro em todas as instâncias. Os jovens que retornam aos estudos por meio do Programa apresentam grande dificuldade no desenvolvimento da escrita, apesar de, em muitos casos, já terem passado anos frequentando a escola.

Analfabetos funcionais na era digital

Nos últimos anos, a inclusão digital expandiu as possibilidades de exercício da escrita e da leitura. Apesar disso, o analfabetismo funcional é responsável por boa parte das pessoas que utilizam a internet não experimentarem seu potencial educativo plenamente. Embora seja uma fonte de descobertas de informações, levando seus usuários ao contato constante com textos de notícias, curiosidades e, até mesmo, obras literárias, por conta do baixo acesso à educação, moradores principalmente de países pobres exploram menos conteúdos do que poderiam. O WhatsApp é um exemplo atual da intensa troca de informações por meio da leitura e da escrita ao redor do mundo. O aplicativo, utilizado por mais de um bilhão de pessoas, chega a registrar a troca de 42 bilhões de mensagens por dia. Ainda assim, estudos desenvolvidos por escolas e empresas têm identificado as profundas dificuldades de seus alunos e funcionários em se comunicar por meio da escrita e interpretar mensagens mais complexas compartilhadas no aplicativo. Em muitos casos, analfabetos funcionais acabam usando a ferramenta apenas com o auxílio de gravação de voz e compartilhamento de imagens, o que os leva a não fazer o uso da internet de forma que colabore para o desenvolvimento de suas habilidades de leitura e escrita.

A dificuldade para ingressar na Universidade

Diversos brasileiros que tentam ingressar na universidade se deparam com a dificuldade de realizar a prova de redação. A redação no vestibular ou prova do ENEM é o momento em que o candidato deve comprovar a sua habilidade de reflexão e de escrita, baseando-se nos temas apresentados no teste. Pelo pouco contato com a leitura e por não exercitar a escrita, muitos que tentam ingressar no Ensino Superior são impossibilitados de desenvolver um texto que argumente de forma precisa sobre as questões apresentadas. É cada vez mais importante que as políticas públicas sejam pensadas para alcançar um número maior de brasileiros em situação de analfabetismo. O processo de alfabetização pode resultar no prosseguimento dos estudos, gerando a conquista de empregos formais por meio de cursos profissionalizantes e resultando, até mesmo, no ingresso à Universidade.

Segundo informações do INAF (Indicador de Analfabetismo Funcional), órgão responsável por medir os graus de alfabetização dos brasileiros, a maior parcela de analfabetos está na população de cor negra, o que sinaliza a desigualdade na garantia ao acesso à educação no País, presente com maior gravidade na realidade dos moradores de periferias. De acordo com a pesquisa, apenas 37% dos entrevistados que se autodeclaram negros terminaram o Ensino Médio, acompanhados por 17% que conseguiram ingressar na Universidade. É preciso lembrar, ainda, de como o analfabetismo acontece historicamente no Brasil. Por muito tempo os analfabetos foram impedidos de exercer direitos como, por exemplo, o de votar. Em 1957, 70% dos brasileiros eram analfabetos. Apesar de exercer diferentes aspectos de sua cidadania, como o pagamento de impostos e funções de trabalho diversas, o analfabeto, na época, não tinha a liberdade de exercê-la plenamente e decidir quem seriam os seus representantes políticos. Em 1964, após uma tentativa de garantia do voto facultativo aos brasileiros analfabetos, por meio de um Projeto de Emenda à Constituição, a resposta da grande maioria dos políticos da época argumentou que a medida levaria ao “crescimento de um eleitorado de tendência subversiva”. Tal afirmação ajuda a entender o interesse político por trás da manutenção da desigualdade social, ainda mais se considerarmos o baixo investimento nas políticas públicas voltadas para a educação no Brasil ao longo da história.

Nos últimos 15 anos, o Brasil passou por um lento progresso na ampliação do acesso à educação. O investimento em projetos como o PEJA e a criação de 18 universidades públicas são dois dos inúmeros exemplos das iniciativas adotadas para a inclusão de brasileiros pobres a diferentes níveis do sistema educacional. Atualmente, medidas governamentais têm ameaçado violentamente os direitos conquistados pela população.

A Proposta de Emenda Constitucional de número 241/55 é um exemplo desse retrocesso. Aprovada em dezembro de 2016, põe em prática a limitação dos investimentos em educação para os próximos 20 anos, o que vai na contramão de medidas adotadas por diversos países ao redor do mundo que pensam a educação como meio essencial para o desenvolvimento social e econômico de suas populações. Como escreveu o pensador Paulo Freire, ícone da reflexão sobre educação no País, “seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica”. É talvez agora, mais que nunca, tempo de luta pela liberdade, e esta só será possível com a manutenção do desejo de aprender a partir da escola e para muito além dela.

 

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