As Produções Marginalizadas

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Ana Paula Lisboa

Às manifestações artísticas, sociais, linguísticas e comportamentais de um povo ou civilização damos o nome de cultura. Portanto, fazem parte da cultura de um povo as ações e manifestações ligadas às expressões artísticas: teatro, música, dança, religião, gírias, pichações nos muros, comidas, bebidas, a melhor forma de se construir uma casa, o melhor dia para se fazer uma festa, mitos, mesmo quando essa definição é, muitas vezes, confundida com “ser uma melhor educação, desenvolvimento, bons costumes, etiqueta à mesa ou elitização”. Talvez a “confusão” aconteça porque ainda hoje muitas produções culturais produzidas nas favelas e periferias, e inevitavelmente por pessoas pretas, não sejam reconhecidas ou legitimadas como cultura ou como produção cultural.

 A capoeira, o samba, o rap e o funk são grandes exemplos de produções culturais vindas das periferias e que, em algum momento, foram proibidas, seja socialmente ou legalmente, de serem produzidas, ouvidas, dançadas, cantadas, vividas, em determinados momentos do País. Nesse momento, não há um ritmo que seja tão favelado, tão criminalizado como o funk. Não só no Rio de Janeiro, favelas de São Paulo e de Minas Gerais passam pelas mesmas questões de proibições pela polícia.

 

Roda de Samba “Mulheres ao Vento” em apresentação no Centro de Artes da Maré | Foto: Douglas Lopes

É proibido proibir

 Atualmente, tramita no Senado Federal um Projeto de Lei enviado por Marcelo Alonso, web designer de 47 anos, morador da zona norte de São Paulo, área da cidade que concentra vários “fluxos”, como são chamados os bailes que acontecem na rua, normalmente feitos com as equipes de som acopladas aos carros. A proposta, além de proibir, criminaliza o ritmo como crime de saúde pública (sem mencionar como seria feito, quem seria criminalizado, quem fiscalizaria).  É bem possível que as 21.985 pessoas que assinaram apoiando o Projeto sejam boa parte daquelas que não conseguem dormir nas noites de sexta e sábado, por conta do som alto e da falta de organização desses eventos. O texto do Projeto de Lei afirma que “é fato e de conhecimento dos brasileiros, difundido inclusive por diversos veículos de comunicação de mídia e internet com conteúdo podre (sic) alertando a população o poder público do crime contra a criança, o menor adolescente e a família”. Crime de saúde pública desta ‘falsa cultura’ denominada funk” só tem mesmo a intenção de declarar que não gosta do ritmo e que não quer ele na porta da sua casa. Sem observar os milhares de empregos e renda gerados, sem considerar que é tarefa da Secretaria de Cultura, e não da Secretaria de Segurança, talvez em parceria, essa organização.

 Em 2009, a ALERJ aprovou a lei que transformou o funk em patrimônio cultural do Rio, mas nem por isso ele se tornou mais aceito. O projeto das UPPs, que tentou trazer mais segurança para a cidade, elegeu o ritmo como vilão. E mesmo com dois editais da Secretaria Estadual de Cultura premiando criações artísticas diretamente ligadas ao funk, ele ainda é tratado como caso de polícia. Projetos que ganharam os ditos editais, mesmo premiados pelo Estado, precisaram negociar com a polícia para acontecer em territórios populares. Não é o caso da Maré, mas ainda assim eventos que não têm o ritmo como foco são vistos, aparentemente, como mais culturais e até mais aceitos.

 Cultura e Entretenimento

Isso também pode acontecer devido à mistura de definições do que seria cultura e o que seria entretenimento. Dá-se aquela confusão de que cultura seria algo maior, que te coloca para pensar, que te faz refletir sobre um determinado tema, que incomoda. Enquanto o entretenimento te aliena, só te diverte, te relaxa, usado como manobra para tirar os seus pensamentos e foco para o que realmente deveria importar.  E não existe nada mais político que estar na rua e é assim que se realiza a maioria dos eventos nas favelas.  Outro bom exemplo são as rodas culturais, que podem ser, sim, um entretenimento da juventude, mas também fazem pensar nas questões sociais.

Existe também a diferenciação da cultura como um fazer quase altruísta, algo feito por amor e que não precisa de dinheiro, enquanto o entretenimento é capitalista e explorador. Mas é fácil pensar assim, quando todas as contas do produtor e dos artistas estão pagas. E como seria difícil na favela se produzir sem o apoio dos comerciantes e, consequentemente, dos consumidores! Um trabalhador que realiza suas funções de segunda a sexta, e aos sábados decide gastar o seu dinheiro em um evento dentro da favela, é alguém que acredita naquele território.

 

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