Crianças e adolescentes vendem rifas, docinhos, pipocas… ‘se viram nos 30’ para não desistir de carreira no esporte
Por Hélio Euclides, em 06/10/2022 às 11h55
Os empecilhos enfrentados por quem deseja viver do esporte no Brasil vão muito além daqueles estrategicamente posicionados nas pistas de atletismo durante a prática de saltos com barreiras. Muitos atletas, das mais diversas idades, precisam realizar vaquinhas, vender rifas, pipocas e docinhos… para quitar gastos com transporte, alimentação, hospedagem, inscrição, antes da conquista das medalhas.
Segundo um levantamento feito pelo site Globo Esporte, 42% dos brasileiros que disputaram os Jogos Olímpicos em Tóquio não possuíam patrocínio. Em números foram 131 atletas sem patrocínio algum, 36 realizaram permutas, 41 fizeram vaquinhas para arrecadar dinheiro e 33 conciliam o esporte com outros empregos. Na delegação brasileira, 78 competidores sequer estão incluídos no Bolsa Atleta. O Maré de Notícias vem mostrando esses obstáculos que os atletas enfrentam em diversas matérias. Recentemente abordamos a trajetória de três jovens esportistas: Kauan Barboza, Lorrane da Silva e Lucas Santana, que são lutadores de jiu-jítsu.
Jacilda Santana, mãe de Lucas, não entende como um atleta campeão sul americano em 2019, vice-campeão Pan Kids em 2020, terceiro colocado peso e absoluto no Brasileiro de 2022, campeão Tour Guarapari em 2022 e 32 vezes campeão regional não consegue patrocínio. “Ele tem um total de 48 medalhas e precisa vender rifas, doces nas ruas e vaquinhas para conseguir competir. Temos corte de gastos em geral, contamos as moedas. O meu filho nem corta mais os cabelos para economizar. Sem contar que precisamos da ajuda de familiares e amigos”, comenta. Ela lembra que quanto mais rápido conseguir as passagens para o filho competir no campeonato internacional em Abu Dhabi (Emirados Árabes) será melhor, pois há aumento de preços constantemente.
Um desafio em comum
Para Marcela Barboza, mãe de Kauan, ser um atleta de alto rendimento não é uma tarefa fácil. É algo que envolve diversos desafios que devem ser superados todos os dias. “Meu filho precisa ter uma dedicação total, como manter os treinos e cuidados com o corpo, ter uma boa alimentação, conciliar estudo com o esporte, ir a explicadora e ajudar nas tarefas de casa dentre outras coisas. Agradeço aos professores da Escola Municipal Dilermando Cruz, em Ramos, que se empenham em ajudá-lo e ainda fazem divulgação”, conta.
Quase todos os finais de semana o Kauan tem competição, com necessidade de transporte e estadia, porque às vezes os campeonatos não acontecem no estado do Rio. “É por essa razão que a questão financeira também é parte fundamental para o desenvolvimento do atleta que, infelizmente, muitas vezes acaba esbarrando na falta de apoio e patrocínio”, diz.
Não é difícil achar atletas fazendo atividade extra para competir, são nomes diferentes com novas histórias, mas os mesmos problemas de falta de financiamentos e patrocínios. Para chegar a ser atleta do Flamengo, a moradora do Parque União, Hellen Vitória, de 13 anos, teve que vender rifa em 2017, para conseguir viajar e participar do campeonato brasileiro de ginástica artística em Porto Alegre. O pai Benevides Silva revela que o próximo objetivo dela é disputar o mundial juvenil, em 2023, na Turquia. “Para conseguir ser atleta é um sacrifício que começa às 6h da manhã quando acorda. Às 07h inicia o treino no Flamengo, que vai até ao meio-dia. Já às 13h tem escola e depois retorna às 18h para um segundo treinamento, que termina às 20h. O que falo para ela e para quem está começando e não desistir dos seus sonhos”, expõe.
Os irmãos lutadores de Jiu-Jitsu Akyllys Torres, de 12 anos, e Athylla Torres, de 10 anos, são ex-moradores do Conjunto Esperança e sentem no quimono a maior dificuldade que é conseguir patrocínio. O pai Júlio Cesar, conta que a maioria dos responsáveis desejariam levar seus filhos para o exterior, para alcançar a valorização, algo que não acontece no Brasil. “Aqui ainda se pensa que o esporte na vida da criança é apenas um passatempo. Nunca olham para o pequeno atleta como um profissional, que pode no futuro se tornar um faixa preta e abrir sua própria academia de artes marciais”, conta.
Um apoio importante parte dos comerciantes, mas ainda não é suficiente. A mãe dos meninos faz bolo de pote e a família toda sai às ruas para vender. “Ela ainda se sacrifica vendendo tapioca e pastel em frente ao estádio do Engenhão, isso para custear as despesas. Se para adulto se encontra difícil o patrocínio, imagine para as crianças”, diz. O objetivo dos irmãos Torres é também disputar o mundial em Abu Dhabi. “Precisamos de ajuda para a alimentação e hospedagem. Mesmo com as dificuldades só tenho a agradecer a todos os professores que ajudaram nessa caminhada e a Academia Renzo Gracie, com os mestres Áureo Couto e Bruno Vargas”, conclui.
Do Piscinão para os aparelhos
Geisa Barbosa, de 10 anos, é moradora da Praia de Ramos e atleta de ginástica olímpica. Para tentar competir, a menina vende pipoca, como foi para participar do campeonato nacional em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, quando ficou em oitavo lugar entre 250 crianças. A atleta treina há três anos na Vila Olímpica Grêmio Recreativo e Esportivo dos Industriários da Penha (VOGREIP). Na pandemia teve muita dificuldade para treinar, então foi necessário montar uma academia para Geisa em casa, para não deixar de fazer os exercícios.
Para a mãe de Geisa, Juliana Jesus Ferreira, sobra o sentimento de frustração pela dificuldade em conseguir suprir as despesas diárias e das competições. “A minha filha é atleta há três anos, mas sem patrocínio. Todo ano buscamos ajuda para ir às competições, mas temos que recorrer a rifa e doações. Os sacrifícios para mim é muita das vezes saber que minha filha precisa de algo e não ter para dar”, desabafa. Esse ano a família tenta levá-la para a competição em Manaus, no dia 15 de novembro.
Além da venda de pipoca a mãe é manicure. “Trabalho mais de 12 horas por dia no salão para tentar suprir todas as necessidades dela. Também faço unha a domicílio para ter um dinheiro a mais. É uma pena que o esporte que a minha filha escolheu para seguir não é patrocinado e nem tem recurso. Vivemos da ajuda das pessoas que se comovem em fazer doações. Eu fico muito triste de a criança ter um sonho e encontrar tantas dificuldades”, comenta. Ela só percebe patrocínio no futebol.
Ferreira acredita que o reconhecimento só venha após participar de olimpíadas e trazer uma medalha de ouro. “Ano passado a minha filha competiu sem recurso nenhum, dessa forma gastei para ela poder participar o valor de R$ 4.800, fora os gastos de alimentação. O que me estimula é perceber que minha filha tem muita garra”, conclui. Ela espera para o futuro coisas boas. Geisa Barbosa tem um ritmo de vida corrida, com nove horas de treino, três vezes por semana, mas não desanima. “Eu amo demais fazer ginástica artística e todos os aparelhos. Me inspiro na Rebeca Andrade. Meu sonho é chegar nas olimpíadas”, finaliza.
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